Fazendo pouco da imprensa, do pensamento e da palavra, Lobão produz polêmica de poucos sabores, mas com muita eficiência para quem busca audiência
Não assisti ao Roda viva com o Lobão. Desde que Lobão trocou a arte polêmica pelo polemismo on-the-rocks,
decidi poupar minha alma do espaço que ele tenta ocupar. Entrevistei-o
algumas vezes nos últimos anos, sempre sobre música, sobre músicos,
sobre o que era sua principal ocupação nos anos 80 e 90. Recentemente,
recebi uma proposta de uma amigo editor para conduzir um longo perfil à
reboque de seu último livro, Manifesto do nada na terra do nunca,
para uma grande revista. Quase aceitei. Tivemos desencontros de agenda,
mas no final, venceu o bom senso: não quero servir de escada para mais
um desfile de frases polêmicas lotadas de adjetivos e neologismos
“corajosos”, “independentes” e “contundentes” com pouca ou nenhuma
capacidade argumentativa.
Hoje meu computador é inundado pela repercussão da entrevista no Roda viva. Dilma teria sido definida como um “neurônio solitário”, “de uma estupidez galopante”, incapaz de acertar um sorvete na testa por ser “incapaz de mirar na própria testa”, que seria uma “ilusão” entender que 40 milhões de pessoas deixando a miséria seja um avanço, que Lobão teria dito que foi o inventor da cena independente do Brasil. No fundo, se alguém me perguntar, eu diria que Lobão faz pouco da imprensa, que é incapaz de devolver-lhe perguntas básicas como “Como assim?”, “Cite exemplos”, “Por que?”, “Quais historiadores sérios pensam como você?”, “Quais biólogos?” ou "Se o seu maior prazer é irritar os idiotas, como você distingue um idiota?". Se alguma dessas perguntas foi feita pela bancada do Roda viva, por favor me avise na caixa de comentários.
Mais do que fazer pouco da imprensa, a ascensão de Lobão como pensador representa uma banalização completa das matérias primas do meu trabalho: as palavras e o pensamento. E coincide com a ascensão das métricas de audiência de internet, das metas de page-views, da necessidade de uma polêmica por dia, de mais e maiores absurdos gerem retuítes, compartilhamentos, comentários, ações e reações. A nova ordem é gerar factóides. E Lobão tem mostrado muito mais intimidade com a ocupação de rei da pastelaria de factóides do que tinha como músico. São poucos os sabores de seus pastéis, é verdade, mas o ritmo de produção impressiona assim mesmo.
Lobão no "Roda viva": o grande prazer dele é irritar idiotas
A velocidade é inclemente. Nos tempos de antigamente, tínhamos um calhamaço por mês para repartir entre notícias, entrevistas e opinião. Uma revista por semana, no máximo, um jornalão por dia. Falávamos apenas para nosso público e as pessoas fisicamente próximas a nossos leitores. A reação era muda ou, quando muito, por carta.
Hoje não apenas a velocidade e a concorrência aumentaram ferozmente, como as metas de audiência também. Imagine, este blog tem mais leitores do que a tiragem do Estadão quando eu comecei a escrever, no século passado. E cada leitor é um republicador potencial – não importa se republica por aprovação ou indignação.
Os mecanismos de medição são ainda mais impressionantemente refinados. Sabemos de onde vem o leitor, onde mora, o que faz na web, quais as palavras são mais clicáveis. Religião e sexo vendem (alguém tem aí o telefone do Malafaia e do Jean Willys pra subir nossa audiência até o fim do mês?). E, já que os smartphones e notebooks ficam geralmente distantes do olhar vigilante da família, podemos atrair sua atenção do jeito mais primitivo – com a gata do Brasileirão, com bichinhos fofinhos ou com sangue. E, para aqueles que não têm pets nem peitos, resta a polêmica.
Que deve ser gritada, revestida de adjetivos e violência. Devemos ter prazer em irritar as pessoas, não em informá-las ou educá-las ou oferecer algo a elas. Porque não precisa fazer sentido. Precisa gerar clique, de amor e de ódio.
Cair nessa armadilha é tão fácil quanto desejar ser relevante e influente. Convém ao blogueiro gerar discussão com a opinião mais estapafúrdia sobre um artista estabelecido. Convém ao pastor avançar por limites cada vez menos ortodoxos da teologia para virar trending topics. Convém à celebridade postar fotos no espelho “quase mostrando mais do que devia”, anunciar suas estripulias sexuais, convém ao político polemizar.
É evidente que estou tão premido pelas metas e pela necessidade de relevância quanto qualquer um dos meus colegas. Escrevo antes para mim que para os outros.
E escrevo também para os adolescentes em busca de uma orientação vocacional: prevejo o pasteleiro de factóides uma profissão em alta no futuro breve. Como dizia Caetano, Lobão tem razão.
Por Ricardo Alexandre
Hoje meu computador é inundado pela repercussão da entrevista no Roda viva. Dilma teria sido definida como um “neurônio solitário”, “de uma estupidez galopante”, incapaz de acertar um sorvete na testa por ser “incapaz de mirar na própria testa”, que seria uma “ilusão” entender que 40 milhões de pessoas deixando a miséria seja um avanço, que Lobão teria dito que foi o inventor da cena independente do Brasil. No fundo, se alguém me perguntar, eu diria que Lobão faz pouco da imprensa, que é incapaz de devolver-lhe perguntas básicas como “Como assim?”, “Cite exemplos”, “Por que?”, “Quais historiadores sérios pensam como você?”, “Quais biólogos?” ou "Se o seu maior prazer é irritar os idiotas, como você distingue um idiota?". Se alguma dessas perguntas foi feita pela bancada do Roda viva, por favor me avise na caixa de comentários.
Mais do que fazer pouco da imprensa, a ascensão de Lobão como pensador representa uma banalização completa das matérias primas do meu trabalho: as palavras e o pensamento. E coincide com a ascensão das métricas de audiência de internet, das metas de page-views, da necessidade de uma polêmica por dia, de mais e maiores absurdos gerem retuítes, compartilhamentos, comentários, ações e reações. A nova ordem é gerar factóides. E Lobão tem mostrado muito mais intimidade com a ocupação de rei da pastelaria de factóides do que tinha como músico. São poucos os sabores de seus pastéis, é verdade, mas o ritmo de produção impressiona assim mesmo.
Lobão no "Roda viva": o grande prazer dele é irritar idiotas
A velocidade é inclemente. Nos tempos de antigamente, tínhamos um calhamaço por mês para repartir entre notícias, entrevistas e opinião. Uma revista por semana, no máximo, um jornalão por dia. Falávamos apenas para nosso público e as pessoas fisicamente próximas a nossos leitores. A reação era muda ou, quando muito, por carta.
Hoje não apenas a velocidade e a concorrência aumentaram ferozmente, como as metas de audiência também. Imagine, este blog tem mais leitores do que a tiragem do Estadão quando eu comecei a escrever, no século passado. E cada leitor é um republicador potencial – não importa se republica por aprovação ou indignação.
Os mecanismos de medição são ainda mais impressionantemente refinados. Sabemos de onde vem o leitor, onde mora, o que faz na web, quais as palavras são mais clicáveis. Religião e sexo vendem (alguém tem aí o telefone do Malafaia e do Jean Willys pra subir nossa audiência até o fim do mês?). E, já que os smartphones e notebooks ficam geralmente distantes do olhar vigilante da família, podemos atrair sua atenção do jeito mais primitivo – com a gata do Brasileirão, com bichinhos fofinhos ou com sangue. E, para aqueles que não têm pets nem peitos, resta a polêmica.
Que deve ser gritada, revestida de adjetivos e violência. Devemos ter prazer em irritar as pessoas, não em informá-las ou educá-las ou oferecer algo a elas. Porque não precisa fazer sentido. Precisa gerar clique, de amor e de ódio.
Cair nessa armadilha é tão fácil quanto desejar ser relevante e influente. Convém ao blogueiro gerar discussão com a opinião mais estapafúrdia sobre um artista estabelecido. Convém ao pastor avançar por limites cada vez menos ortodoxos da teologia para virar trending topics. Convém à celebridade postar fotos no espelho “quase mostrando mais do que devia”, anunciar suas estripulias sexuais, convém ao político polemizar.
É evidente que estou tão premido pelas metas e pela necessidade de relevância quanto qualquer um dos meus colegas. Escrevo antes para mim que para os outros.
E escrevo também para os adolescentes em busca de uma orientação vocacional: prevejo o pasteleiro de factóides uma profissão em alta no futuro breve. Como dizia Caetano, Lobão tem razão.
Por Ricardo Alexandre
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