Caymmi gostava de música clássica
O grande mestre baiano sonhava que suas
canções fossem executadas por intérpretes
eruditos. Mas sua música foi sequestrada
pela recepção popularesca
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Lembro hoje como se fosse há vinte anos. E foi mesmo em abril de 1994, quando o cantor e compositor baiano Dorival Caymmi completava 80 anos. Na ocasião, para fazer uma reportagem sobre a efeméride, tive a honra de visitá-lo e, por algumas horas, privar de sua intimidade ao lado de sua amada Stella Maris - ela também cantora e adorável - no apartamento do Posto 6 de Copacabana, onde morava havia meio século. Não preciso nem dizer que a visita foi memorável, até porque a estou rememorando neste instante. Quero contar como foi.
Dos fim dos anos 1930 até os 1990, Dorival foi poucas vezes a Salvador. Talvez porque tenha trazido a Bahia consigo em meados da década de 1930, ao embarcar num ita que o trouxe à então Capital Federal. Uma Bahia de acarajés pequenos (que aumentaram de tamanho depois para agradar aos turistas) e paisagens bucólicas que logo desapareceria, até porque seu amigo Jorge Amado se encarregaria de trazer a idealização pitoresca da Bahia para o mundo real – ou melhor, para o mundo do realismo socialista e em seguida do realismo folclórico. Caymmi conservou e representou uma Bahia de aquarelas e óleos sobre tela, que ele próprio se encarregou de pintar, pois era pintor e ilustrador (começou a carreira no Rio como ilustrador de revista e jornal).
Dos fim dos anos 1930 até os 1990, Dorival foi poucas vezes a Salvador. Talvez porque tenha trazido a Bahia consigo em meados da década de 1930, ao embarcar num ita que o trouxe à então Capital Federal. Uma Bahia de acarajés pequenos (que aumentaram de tamanho depois para agradar aos turistas) e paisagens bucólicas que logo desapareceria, até porque seu amigo Jorge Amado se encarregaria de trazer a idealização pitoresca da Bahia para o mundo real – ou melhor, para o mundo do realismo socialista e em seguida do realismo folclórico. Caymmi conservou e representou uma Bahia de aquarelas e óleos sobre tela, que ele próprio se encarregou de pintar, pois era pintor e ilustrador (começou a carreira no Rio como ilustrador de revista e jornal).
“Faço música como pinto telas”, disse-me com a voz grave e calorosa, recostado a uma poltrona e sorrindo para si mesmo. ”Eu quero evocar a minha Bahia, a Bahia de quando eu era jovem.” Era um ótimo pintor. Mas um compositor magistral. Compôs não mais que 130 canções, com o preciosismo que lhe era característico. Acreditava que suas canções fossem o correspondente nacional da chanson erudita francesa e do Lied alemão. Caymmi ansiava por que suas canções adquirissem o status de música erudita. E sonhou com isso a vida inteira. “Meu violão é intuitivo, mas tem qualquer coisa de Debussy”, afirmou.
Durante a nossa conversa, mostrou sua coleção de LPs. Ele a mantinha apesar de naquele momento as pessoas acreditassem que o vinil fosse ultrapassado. Então me mostrou discos de peças orquestrais dos compositores franceses Claude Debussy, Maurice Ravel e Gabriel Fauré (seu favorito, cantarolava a Pavane op. 50 de Fauré – quantos ouviram isso da voz veneranda de Caymmi?), além de composições barrocas como os Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach e a ópera L’Incoronazione di Poppea, de Claudio Monteverdi. Caymmi não era leigo. Ao contrário, conhecia música clássica como poucos. E dizia compor para tentar emular esses mestres. Sua obra pequena é uma declaração de amor à música. Entre os mestres populares, disse que sua grande influência era J.B. Barbosa (Sinhô), o Rei do Samba, de quem assimilou as síncopes e as crônicas em forma de versos. Naquele 1994, ele se dizia fã de Tim Maia. Mas Sinhô era seu mestre. “Eu tenho uma ideia simples e saio inventando, brincando com as notas e as palavras”, disse. “Pode ser um episódio cotidiano, ou uma brincadeira minha. Assim nascem minhas composições.” Como um mestre erudito, ele chamava suas canções de composições. E suas composições de candidatas a telas. Era um artista de fusões de sentidos.
Assim entendo a curta mas intensa produção de Dorival Caymmi. Ele próprio me forneceu a chave interpretativa de sua obra. É por isso que acho redutora qualquer interpretação nacionalista e afro-descendente da música e da contribuição de Caymmi. Denominá-lo “Buda Nagô”, com o fez Gilberto Gil, é reduzir o mestre a um reles cultor de misticismo e feitiços. Dizer que ele é apenas “popular” seria aproximá-lo a um presumível consumidor do “povo”.
No entanto, Caymmi vai além de tudo isso. Ele é mais um exemplo da forma como os intelectuais e produtores de cultura brasileiros reduzem o legado de seus artistas a uma espécie de caricatura. O compositor Heitor Villa-Lobos foi rebaixado a seresteiro, quando ele próprio usava a música popular como celeiro de temas e motivos para suas próprias composições. São aquele que chamam o mestre de “Villa”, dentro daquele hábito brasileiro de rebaixar tudo sob o pretexto de que estão sendo simpáticos. Não obstante, Villa-Lobos via com desconfiança a banalização promovida pela divulgação da música popular em palcos, programas de rádio e discos. Caymmi também não era dado a shows popularescos e só participou deles em consideração a amigos músicos e parentes, interessados em se promover em nome dele. São os vícios da cultura brasileira, que se esforça em rebaixar seus grandes talentos para se aproximar ao entendimento da aurea mediocritas.
Neste centenário do nascimento de Dorival Caymmi, gostaria de alertar aos que amam a música para os perigos da interpretação rebaixadora da obra do mestre baiano. Não se enganem com as falsas aparências. Dorival Caymmi é bem maior que aqueles que desejam puxá-lo para o populismo barato. Ouçam Caymmi como o genial autor de canções que ele foi. Um autor erudito que conheci e aprendi a admirar como ele queria ser admirado.
Durante a nossa conversa, mostrou sua coleção de LPs. Ele a mantinha apesar de naquele momento as pessoas acreditassem que o vinil fosse ultrapassado. Então me mostrou discos de peças orquestrais dos compositores franceses Claude Debussy, Maurice Ravel e Gabriel Fauré (seu favorito, cantarolava a Pavane op. 50 de Fauré – quantos ouviram isso da voz veneranda de Caymmi?), além de composições barrocas como os Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach e a ópera L’Incoronazione di Poppea, de Claudio Monteverdi. Caymmi não era leigo. Ao contrário, conhecia música clássica como poucos. E dizia compor para tentar emular esses mestres. Sua obra pequena é uma declaração de amor à música. Entre os mestres populares, disse que sua grande influência era J.B. Barbosa (Sinhô), o Rei do Samba, de quem assimilou as síncopes e as crônicas em forma de versos. Naquele 1994, ele se dizia fã de Tim Maia. Mas Sinhô era seu mestre. “Eu tenho uma ideia simples e saio inventando, brincando com as notas e as palavras”, disse. “Pode ser um episódio cotidiano, ou uma brincadeira minha. Assim nascem minhas composições.” Como um mestre erudito, ele chamava suas canções de composições. E suas composições de candidatas a telas. Era um artista de fusões de sentidos.
Assim entendo a curta mas intensa produção de Dorival Caymmi. Ele próprio me forneceu a chave interpretativa de sua obra. É por isso que acho redutora qualquer interpretação nacionalista e afro-descendente da música e da contribuição de Caymmi. Denominá-lo “Buda Nagô”, com o fez Gilberto Gil, é reduzir o mestre a um reles cultor de misticismo e feitiços. Dizer que ele é apenas “popular” seria aproximá-lo a um presumível consumidor do “povo”.
No entanto, Caymmi vai além de tudo isso. Ele é mais um exemplo da forma como os intelectuais e produtores de cultura brasileiros reduzem o legado de seus artistas a uma espécie de caricatura. O compositor Heitor Villa-Lobos foi rebaixado a seresteiro, quando ele próprio usava a música popular como celeiro de temas e motivos para suas próprias composições. São aquele que chamam o mestre de “Villa”, dentro daquele hábito brasileiro de rebaixar tudo sob o pretexto de que estão sendo simpáticos. Não obstante, Villa-Lobos via com desconfiança a banalização promovida pela divulgação da música popular em palcos, programas de rádio e discos. Caymmi também não era dado a shows popularescos e só participou deles em consideração a amigos músicos e parentes, interessados em se promover em nome dele. São os vícios da cultura brasileira, que se esforça em rebaixar seus grandes talentos para se aproximar ao entendimento da aurea mediocritas.
Neste centenário do nascimento de Dorival Caymmi, gostaria de alertar aos que amam a música para os perigos da interpretação rebaixadora da obra do mestre baiano. Não se enganem com as falsas aparências. Dorival Caymmi é bem maior que aqueles que desejam puxá-lo para o populismo barato. Ouçam Caymmi como o genial autor de canções que ele foi. Um autor erudito que conheci e aprendi a admirar como ele queria ser admirado.
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