Ao Vivo

30 de junho de 2014

Como um animal ferido

O Rei Pelé relembra os difíceis momentos do Mundial de 1966, na Inglaterra – quando anunciou, depois da derrota, que nunca mais atuaria numa Copa do Mundo

PELÉ


Pelé (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
CAÇADO Pelé é retirado de campo no jogo contra Portugal. O Rei disse que nunca mais atuaria numa Copa (Foto: PA Photos/Otherimages)
Eu tinha sido massacrado, estava todo dolorido depois do jogo contra a Bulgária. Meu joelho direito estava me matando.
Mas ainda estava me preparando com toda a dedicação para o próximo jogo, estava determinado a não perder nenhuma partida, como em 1958 e 1962. Por isso fiquei tão chocado quando o dirigente da Seleção me informou que eu ficaria no banco no jogo contra a Hungria. “Queremos que você descanse, Pelé”, ele me disse. “É melhor você ficar no banco agora, ficar protegido do jogo sujo e poder jogar completamente recuperado num jogo mais decisivo.”
Um jogo mais decisivo? Que tal os Magiares Maravilhosos, a seleção que eliminara o Brasil em 1954 e chegara às quartas de final lá e em 1962? Se não vencêssemos aquele jogo, não haveria mais jogos a decidir.
Eu estava revoltado. Mas, novamente, os pronunciamentos da diretoria eram tratados como a palavra definitiva. Eu não queria criar a impressão de que era diferente dos outros. Não queria parecer uma prima-dona. Então, segurei a língua.
A Hungria nos destruiu por 3 a 1. O resultado chocou o mundo – era o primeiro jogo da Copa em que o Brasil perdia desde 1954, na Suíça, também contra os húngaros.
Assisti à derrota do banco dos reservas, devastado e sem poder fazer nada. Nossa derrota deixou os dirigentes brasileiros num frenesi. Mais uma vez, como em 1950, toda a nossa arrogância subira para a cabeça e se transformara num pânico devastador. Para ter chance de continuar no campeonato, a gente precisava derrotar o último adversário da chave, Portugal, por uma margem de muitos gols. Os dirigentes me colocaram de volta em campo, mas Garrincha, Gylmar e Djalma Santos foram mandados para o banco. Orlando, que havia jogado no time de 1958, mas não jogara mais nenhuma Copa desde então, agora estava dentro. Ao todo, tivemos sete mudanças em relação ao jogo anterior. Era loucura, mas novamente – está percebendo o padrão? – todos ficamos quietos.
Assim que o jogo contra Portugal começou, fui jogado para escanteio pelos zagueiros, que abertamente miravam meu joelho machucado. Num lance, um zagueiro me atropelou.
Enquanto eu ainda cambaleava, ele veio novamente e me acertou mais uma vez, primeiro com os pés. Todo mundo no estádio pediu falta. O doutor Gosling e Mário Américo, a mesma dupla que curara meu joelho com toalhas quentes na Suécia em 1958, entraram correndo no campo.
Desta vez, não haveria mais milagres. Eu havia rompido um ligamento. Mário Américo e o doutor Gosling me carregaram para fora do campo, com meus braços apoiados nos ombros deles e a perna suspensa no ar. Eu não conseguia colocar peso algum na perna direita. Mas as regras de então da Copa do Mundo proibiam qualquer substituição ou troca, mesmo se o jogador se machucasse. Eu não queria deixar o Brasil com um homem a menos numa partida tão decisiva. Então, minutos depois, voltei ao campo. Fiquei mancando, totalmente imprestável, praticamente pulando numa perna pelo resto do jogo.
O Brasil perdeu – mais uma vez de 3 a 1 – e estávamos fora da Copa do Mundo. No final, não seríamos nós a receber a taça das mãos da rainha Elizabeth – mas os próprios ingleses, liderados pelo heroísmo de Bobby Moore e do técnico, sir Alf Ramsey. Achei bem merecido o triunfo da Inglaterra, que afinal era também o berço do futebol moderno. Infelizmente, nunca teria minha chance de jogar em Wembley, nem mesmo num amistoso. Essa ausência é um dos poucos remorsos da minha carreira.
À medida que eu pulava num pé só no jogo contra Portugal, abatido e mancando como um animal ferido, ia ficando cada vez mais nervoso. Estava muito bravo com a arrogância dos nossos treinadores e dirigentes. Estava revoltado com o modo como a política brasileira se intrometera em nossos preparativos. Estava furioso com o fato de juízes e bandeirinhas não nos protegerem. Acima de tudo, estava desapontado comigo mesmo. Sempre estive 100% em praticamente todos os jogos que joguei pelo Santos, mas acabei gravemente machucado em todas as três Copas em que participara. Não podia ser coincidência, pensei. E, depois daquele jogo, chamei os repórteres e anunciei minha decisão de nunca mais participar de outra Copa do Mundo.
Na viagem de volta de Londres para o Brasil, nosso voo atrasou por várias horas. Como tudo o mais que acontecera naquela Copa de 1966, a diretoria não deu nenhuma explicação sobre o que acontecia – eles esperavam que a gente ficasse ali sentado, obediente, sem questionar. Chegamos ao Rio de Janeiro bem depois da meia-noite. Os jogadores de São Paulo foram levados correndo para outro avião. Só mais tarde ficamos sabendo a razão dos atrasos: os dirigentes tinham medo de que a multidão nos linchasse quando voltássemos ao Brasil. O medo era infundado – quase ninguém apareceu.
Mas aquele episódio só reforçou minha decisão. A Copa do Mundo era algo que eu poderia passar sem.
 

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