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1 de outubro de 2014

Você já escolheu o seu candidato?

Os brasileiros deixam para escolher em quem votar na última hora e costumam esquecer rápido quem elegeram para deputado e senador. É hora de mudar isso

MURILO RAMOS E MARCELO ROCHA
Deputados federais mais lembrados na pesquisa do Ibope (Foto: Folhapress (4),Estadão Conteúdo (2),CB/D.A Press(2) e Futurapress)
Votar em bichos como o rinoceronte Cacareco ou o macaco Tião expressa o descaso dos brasileiros com as eleições legislativas. Há quem diga que se trata de voto de protesto. Nas eleições de 2010, o beneficiário desse tipo de voto pertencia à espécie humana e ocupou, nos últimos quatro anos, uma cadeira na Câmara dos Deputados. A atuação parlamentar de Tiririca – discreta, para dizer o mínimo – é um exemplo de como os brasileiros podem desperdiçar o próprio voto. Uma pesquisa do Ibope realizada no início do mês em São Paulo e no Rio de Janeiro mostra que o fenômeno tem tudo para se repetir em 2014. Pela pesquisa, Tiririca será eleito novamente em São Paulo, com votação expressiva. Esse fenômeno decorre de outro, mais assustador. Três semanas antes das eleições, apenas 12% dos eleitores paulistas e 11% dos cariocas sabiam dizer em quem votariam a deputado (leia o quadro acima). Deixar para a última hora – e, na última hora, votar num candidato indicado pelo sogro no almoço de domingo, num retrato de um santinho recebido na boca de urna ou mesmo numa piada – é a receita certa para eleger um ou mais tiriricas.
O eleitor brasileiro não acompanha seu candidato ao longo do mandato – e esquece seu nome rapidamente. Apenas um mês após a eleição de 2010, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encomendou uma pesquisa para entender o comportamento dos eleitores. O resultado foi, pode-se dizer, assombroso. Tão pouco tempo depois, 22% não lembravam o nome do candidato a deputado federal em quem tinham votado, 23% dos entrevistados não lembravam o deputado estadual e 21% o senador. Em compensação, apenas 3% disseram não lembrar em quem votaram para presidente da República, 11% para governador. Outras pesquisas mostram que, com o passar do tempo, esse resultado só tende a piorar. Quanto mais longe fica a eleição, mais eleitores esquecem os nomes de seus candidatos a deputado e senador. Os brasileiros demonstram um alto grau de indiferença em relação ao Poder Legislativo. Na visão nacional, o presidente da República ainda é o principal mandatário, o ocupante do cargo capaz de solucionar as mais prementes questões do país. O Congresso Nacional é, desse ponto de vista, um prédio em que 594 políticos apenas criam problemas e querem se dar bem.
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Os brasileiros parecem viver ainda sob a influência da percepção do século XIX, quando o poder era exercido pelo imperador Dom Pedro II, que manobrava para derrubar o governo no Parlamento sempre que necessário fosse. Ou do período da ditadura militar (1964-1985), quando o Congresso funcionou boa parte do tempo sem condições de exercer seu papel. Esquecem que, no desenho do sistema institucional brasileiro atual, é justamente o Congresso que mais influencia suas vidas. É de lá que saem as principais mudanças, com aplicação imediata, ou as manobras secretas que, sem que se perceba, levam à falta de recursos para saúde, educação e segurança. Por causa dessa indiferença, os brasileiros votam em macacos e rinocerontes, elegem tiriricas. O maior feito do deputadopalhaço Tiririca, nos últimos tempos, foi ter sido processado pela Sony, que o acusa de plagiar o cantor Roberto Carlos em sua propaganda eleitoral. No passado, o voto em Tiririca já foi do macaco Tião, chimpanzé do zoológico do Rio de Janeiro, alçado a candidato a prefeito em 1988 pela revista Casseta Popular. Nos tempos da cédula de papel, Tião recebeu milhares de votos. Na urna eletrônica, o voto em Tião tornou-se impossível. Mas não é mais preciso inventar candidatos esdrúxulos – eles estão à disposição de quem quiser debochar com seu voto.

  Como o ser humano não desenvolveu ainda um sistema político menos imperfeito que a democracia, conviver com seus desvios é um aprendizado. Beppe Grillo é um bom comediante na Itália desde a década de 1970. Em 2009, ele lançou em seu blog o Movimento Cinco Estrelas, para protestar contra a política italiana, esgotada pela corrupção dos anos Berlusconi e pela austeridade de Mario Monti. Em meio à crise de representatividade dos partidos, a piada virou coisa séria. Os candidatos do movimento conquistaram 25% das cadeiras da Câmara dos Deputados e 24% do Senado no ano passado. Pelas regras do movimento, os eleitos só podem ter dois mandatos, não aceitam as verbas públicas para sustentar gabinetes. Seu objetivo é “livrar a Itália da classe política” atual. Até agora, Grillo bagunçou ainda mais o instável parlamentarismo italiano, em que os governos se sucedem rapidamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em momentos como este, de desolação com a política, os eleitores buscam soluções fora dela. Em 2003, num quadro menos traumático, os americanos foram atrás não da graça de um Grillo, mas da espada de Conan, o Bárbaro. Num momento em que estavam descontentes com impostos altos, o preço da energia em alta e uma crise econômica, os californianos elegeram como governador o ator e fisiculturista Arnold Schwarzenegger, com o slogan “Salve a Califórnia”. Arnie ou “Governator”, uma alusão ao nome “Terminator” (título original do filme O exterminador do futuro e um de seus personagens memoráveis), foi reeleito em 2006 e governou até 2011, com sonhos até de concorrer à Presidência. Ironia: o republicano Schwarzenegger foi sucedido pelo democrata Jerry Brown, um político profissional comum – para os padrões da Califórnia, é claro. Em 1979, Brown foi ridicularizado pela banda Dead Kennedys na música “California übber alles” por seu “hippismo”. Ele foi ironizado por tentar transformar a América num país dominado por “zen fascistas”, que obrigaria crianças a meditar nas escolas.
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O estilo dos candidatos “fora do sistema” pode ser diverso, mas os americanos pensam como os italianos – ou os brasileiros – quando se trata de seu Congresso. No ano passado, a aprovação do Congresso americano pelos eleitores atingiu o nível mais baixo desde o início da década de 1970. Apenas 9% dos americanos aprovavam a atuação dos parlamentares, segundo uma pesquisa da Gallup. Neste mês, o índice está um pouquinho melhor – 13%. Para 22% dos americanos, todos os deputados e senadores deveriam ser substituí­dos para que o Congresso começasse do zero. No Brasil, a confiança no Congresso Nacional também está em níveis baixíssimos. Em 2010, 38% das pessoas diziam confiar no Congresso Nacional. Em 2013, foram 29%. Entre 18 instituições pesquisadas, o Congresso só aparece à frente dos partidos políticos. “A descrença no Congresso é tanta que o povo encara a rotina do Legislativo como uma palhaçada. Acham que o melhor é votar num palhaço de verdade”, diz a cientista política Maria Sylvia de Carvalho Franco. Ela lembra que, ao votar em candidatos populares e inexpressivos dentro das estruturas partidárias, o eleitor só reforça a cúpula de tais partidos. “Observamos verdadeiros mandarins que transferem o poder para um pequeno núcleo, seja por parentesco ou apadrinhamento.”

Tratar do Congresso Nacional implica driblar trivialidades e encarar uma realidade difícil: por piores que pareçam, os 594 caríssimos parlamentares são essenciais ao Brasil – assim como a qualquer outro país democrático e civilizado. Nos 20 anos da ditadura militar, os brasileiros sentiram as conse­quências de não poder expressar sua opinião no voto para deputado e senador. Notaram também – acredite – como a vida era pior sem eles para contrabalançar o poder do Executivo. Essa memória ficou diluída nos últimos anos, diante de condutas cada vez mais escandalosas e omissas de muitos parlamentares. Apesar de seus percalços, vícios e palhaços, o Congresso precisa de atenção dos eleitores, porque tem a missão de elaborar leis e fiscalizar o governo. Quando trabalha direito, o Congresso produz bons resultados para o país. Em abril, foi aprovado o Marco Civil da Internet, uma lei considerada boa por especialistas internacionais. No ano passado, o Congresso estabeleceu direitos trabalhistas para empregadas domésticas. Em julho, aprovou mudanças no Supersimples, que estendeu benefícios fiscais a pequenas e microempresas. Essas empresas detêm 80% dos empregos do país.
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Faltam ao Congresso vontade e coragem para encarar tarefas mais difíceis. A maioria dos deputados e senadores foge de temas espinhosos, como a legalização do aborto ou a redução da maioridade penal, temas caros à população. Fazem isso pelo medo de perder votos. A omissão é o caminho menos arriscado. Do mesmo modo, evitam encarar reformas, como a tributária ou a trabalhista, que seriam capazes de dinamizar a economia e gerar mais empregos no país. Fogem também da reforma política, que, em última instância, poderia dificultar a vida dos maus parlamentares e dos palhaços. Como obrigar o Congresso a aprovar mais leis importantes e a ter coragem de encarar as reformas necessárias? A única saída é eleger gente capaz de fazer isso, deixando de fora os incapazes e os desonestos.

PODER Um solitário deputado no plenário do Congresso.  É no Legislativo que se tomam  as decisões que mais influenciam nossa vida (Foto: Ed Ferreira/Estadão Conteúdo)
É verdade que a complexidade do sistema eleitoral brasileiro não ajuda. No caso de presidente ou governador, o eleitor vota em apenas um candidato. A eleição para o Legislativo envolve o sistema proporcional. Nele, a vitória é compartilhada por vários candidatos, desde que atinjam um número suficiente de votos. O eleitor pode votar apenas na legenda, de modo a eleger os candidatos mais bem votados do partido com que se identifica. Compreensivelmente, ele não percebe que, graças às regras eleitorais, vota num Tiririca e manda para Brasília, sem ter como escolher, outros dois ou três deputados. Ou, como em 2002, vota em massa no estridente Enéas (quase 1,6 milhão de votos) e elege deputados federais outros cinco aliados do barbudo – um deles com 275 votos, número digno de vereador de cidade minúscula. Coisas assim acontecem, graças à regra do quociente eleitoral, um número que resulta da divisão do total de votos válidos pelo número de cargos em disputa. Para um partido ou coligação eleger um deputado, precisa atingir esse quociente. Está aí a função política de Tiririca: garantir o quociente do PR.
O objetivo desses cálculos é nobre: assegurar que os partidos tenham mais força, que os eleitores votem em seu conteúdo programático. O sistema proporcional pressupõe partidos políticos de verdade – e eleitores que se sintam representados por eles. Só que, no Brasil, sobram partidos – mas às vezes faltam ideias claras e visão de mundo. A imensa maioria dos 32 partidos não tem nenhum compromisso com diretrizes ou linhas de pensamento, salvo raras exceções. Têm donos ou um pequeno grupo de comissários. Os nanicos alugam tempo de TV e outras mercadorias políticas aos maiores – e faturam um trocado com dinheiro do Fundo Partidário, financiado com dinheiro público. Os maiores compram o apoio dos menores, ao pagar parte de suas despesas de campanha. É uma feira invisível de bens políticos. Em muitos casos, o eleitor não enxerga nem sequer os feirantes. Vê apenas os atores recrutados para vender, na TV, a ilusão de que, uma vez eleito, o candidato cuidará dos interesses do eleitor. Como fez o mensaleiro e presidiário Valdemar Costa Neto com a estratégia Tiririca no PR, os donos dos partidos burlam malandramente a essência do sistema proporcional. Jogam no mercado os “puxadores de voto”, cujo único propósito é ajudar a eleger outros deputados.
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É um engodo duplo. Um, mais profundo, na democracia. O outro, mais visível, no eleitor. Valdemar e outros perceberam que há um grande número de eleitores que enxergam a ilusão – e a enxergam cinicamente. Subvertê-la, pelo escracho, é uma tática brilhante, como demonstrou a votação de Tiririca nas eleições passadas. Não é um voto de protesto. Um voto em tipos como Tiririca é menos que isso. É um voto de escárnio, de desprezo – e, em larga medida, de ingenuidade. Políticos sagazes, como Valdemar, contam com esse deboche para continuar mandando em Brasília. O eleitor acha que faz piada. Quem acaba rindo são políticos como Valdemar. A piada somos nós.

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