Marcelo Estraviz: "Doar vai muito além do que simplesmente ajudar ao próximo"
A lógica da doação é interessante por ser o oposto do consumo, com aquela tarefa de estar querendo suprir alguma necessidade, alguma carência, sempre com a sensação de escassez
RENATO MACHADO
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recursos para ONGs é a arte de Marcelo Estraviz. Há 17 anos trabalhando
no terceiro setor, o empreendedor luta ativamente para que o brasileiro
tome gosto pelo ato de doar - ainda pouco usual no país.
Para isso, Estraviz ajuda a estruturar uma campanha mundial em pról da
filantropia. O Dia de Doar, que será realizado na próxima terça-feira
(2), é um projeto em comunhão com campanhas de diversos países da
América Latina, Ásia, Europa, Oceania e nascido nos Estados Unidos. Em
contraponto à Black Friday e seu incentivo ao consumismo, ativistas
norte-americanos criaram, em 2012, a Giving Tuesday (terça-feira da
doação).No Brasil, o evento possui 479 colaboradores cadastrados no site oficial - dentre organizações, empresas e pessoas. Apresentar propostas e atividades a serem realizadas no dia 2 é ponto obrigatório na hora da inscrição. É nas redes sociais (com a hashtag #diadedoar) que a campanha ganha força. Entenda melhor a campanha e seus objetivos na entrevista que Marcelo Estraviz concedeu a ÉPOCA.
ÉPOCA - No que consiste a campanha Dia de Doar?
Marcelo Estraviz - O dia de doar tem duas frentes simultaneamente. Nos Estados Unidos, que faz três anos que acontece, chama Giving Tuesday e é um contra-ponto ao Black Friday, no sentido do consumo. Tem um vínculo com o Thanksgiving (Dia de Ação de Graças), propriamente dito, mas ele é efetivamente para se refletir. Aqui no Brasil a gente criou, no ano passado, o Dia de Doar numa data próxima. A gente teve a oportunidade de criar em uma feira de ONGs que acontece todo ano com 500 organizações simultâneas. Para esse ano, assinamos o acordo entre os dois projetos, envolvendo a Fundação das Nações Unidas, da ONU. Nós já somos 20 países envolvidos. Então passamos a fazer parte da família Giving Tuesday, sendo que no Brasil chama Dia de Doar, na América Latina chama Un día para Dar. A proposta é a mesma, que é inspirar as pessoas a, num dia determinado, poder fazer doações, poder doar alimento, poder doar dinheiro, poder doar sangue, enfim. Que essa inspiração reflita no decorrer do ano. Na mesma linha, que as organizações possam aproveitar esse dia como um dia específico pra poder fazer solicitações. Também para as empresas fazerem algum tipo de atividade com seus funcionários, ou algum tipo de doação coletiva pra alguma organização. É uma grande celebração do doar, essa é a ideia.
ÉPOCA - Como você vê a necessidade de formação de uma cultura de doação no Brasil?
Estraviz - A gente acha que a cultura de doação é uma atividade que não é em um dia que a gente vai resolver. A gente sabe que essa é uma das tarefas que é importante fazer, porque você reflete sobre isso. Da mesma forma que você reflete sobre o dia sem carro, ou a segunda-feira sem carne. São dias que aparentemente têm o objetivo de fazer as pessoas refletirem sobre o assunto. Várias outras ações são necessárias pra gente fazer uma ampliação da cultura de doação. O que a gente acha importante nesse formato, nesse modelo, é justamente descentralizar. Programas como o Teleton, Criança Esperança, são atividades que, em um dia, um monte de gente doa pra uma organização. A gente então descentralizou esse processo. É uma lógica em rede mesmo. A gente nao quer que eles doem para uma plataforma, que depois repassa o dinheiro. Não, a ONG vai pedir dinheiro, a pessoa vai doar diretamente pra essa ONG, não tem nada a ver com a gente e esse processo deve ser justamente replicável e gerar escala. Ele tem esse sentido de ampliação de cultura justamente pelo espelho, pelo exemplo, pela rede, por uma coisa gerar outra. Por isso a gente pede para que as organizações digam o que vão fazer e isso tá lá público no nosso site, pra que eles possam ser copiados, se for o caso.
ÉPOCA - Um dos objetivos da proposta é criar uma reflexão nas pessoas sobre o consumo e o ato de doar. Como funciona isso?
Estraviz - A gente tem muito a imagem de que o beneficiário da doação é o que mais ganha com isso, quem recebeu a doação. Mas tem um efeito muito importante no cara que fez a doação, na verdade. É um grande beneficiário também. Ele se sente bem, é uma situação muito prazerosa pra quem doa. No consumo você tem aquela tarefa de estar querendo suprir alguma necessidade, alguma carência. "Quero comprar o carro do ano, o computador, a roupa". E é sempre uma sensação de escassez, sempre está faltando algo. A lógica da doação é interessante por ser o oposto disso. Quando a gente percebe que é o oposto da lógica da abundância. Os maiores doadores no mundo inteiro, e não só aqui no Brasil, são os pobres. As pessoas pobres fazem muito mais doação, tanto percentualmente em relação a seus salários, como em frequência que doam. Isso é, por um lado, porque veem a miséria muito próxima a eles. E também porque o humilde é mais engajado, está mais envolvido com sua própria comunidade, tem um sentido mais de pertencimento, é outra lógica. A gente vai ficando com mais poder e mais dinheiro e vai se fechando em nosso "castelinho". Eu acho que a ideia da doação tem uma característica muito interessante do bem-estar que se faz. É uma forma egoísta de dizer, mas acho que é quase como uma provocação, que há um enorme benefício para o doador. Essa sensação de prazer, é muito interessante porque faz com que ele repita a ação. Vai muito além do que simplismente ajudar o próximo.
ÉPOCA - Como surgiu a parceria com o Giving Tuesday?
Estraviz - No ano passado a gente já sabia da existência dos gringos. Eu, particularmente, quem comecei esse processo no Brasil. A gente já ia fazer, porque existia uma oportunidade concreta, que era fazer uma atividade no ambiente que tinha uma feira de 500 ONGs juntas. Era num sábado e foi a oportunidade de fazer pessoas de fora virem pra cá para escolher a qual ONG doar. Então já surgiu daí. Quando eu comecei a estudar esse assunto na internet, eu vi que existia o Giving Tuesday. Prefiri gastar energia fazendo o Dia de Doar, buscando parceiros, já sabendo que no ano seguinte a gente faria essa aliança com eles. Mais que nada por uma troca de experiências, de conhecimento. Não ganhamos nada do Giving Tuesday internacional, até porque eles não têm dinheiro também. A gente só ganha por ser uma coisa mais envolvida com o mundo inteiro. A gente tem uma expectativa que daqui alguns anos o mundo inteiro nesse dia esteja fazendo atividades de doação. Essa ideia de se juntar vem daí.
ÉPOCA - Como funciona o trabalho de divulgação do projeto?
Estraviz - Nos últimos dois anos eu tenho feito, voluntariamente, esse papel de ampliar a cultura de doação no país. Fazendo ações que envolvam esse tipo de estratégia. E daí, claro, a gente vai se aliando com pessoas que têm expertise. A gente tem esses embaixadores (até o fechamento da matéria eram 479 apoiadores), que são as pessoas que conseguem divulgar essas atividades e compartilhar os dados, retuitar, enfim. A experiência da rede social é muito nesse sentido, de fazer as pessoas replicarem o que está sendo dito, o que está sendo feito. Mas não como uma estratégia pensada demais, é mais as pessoas irem replicando essas informações.
ÉPOCA - E se vocês perderem o controle?
Estraviz- Nós já perdemos o controle da campanha. Quando a gente, de fato, trabalha em rede com o objetivo de que essas ações sejam replicadas e outra pessoa descobre, alguém compartilha uma foto não sei aonde. É só a partir da hashtag que a gente consegue ver as coisas que estão acontecendo. No ano passado mesmo, em uma campanha que era para ser focada só nas 500 ONGs da feira, a gente descobriu no dia - porque fomos buscar nas hashtags - que tava acontecendo uma super ação em Curitiba, no hemocentro de Curitiba, que eles davam pros doadores um cartaz em formato de balão de quadrinhos, escrito “eu já doei sangue”, “eu vou doar”, enfim, uma ação totalmente feita por uma menina lá que viu as coisas que a gente tava fazendo, gostou, assumiu e começou a aplicar. Esse é o "perder o controle" de uma ação bacana, do bem, que as pessoas replicam. É uma boa forma de perder o controle. A gente tem a vantagem que esse é um tema que nós não temos inimigos. Você não vai encontrar um cara que vai dizer “eu sou contra isso”. Qualquer tipo de replicação dessa informação vai gerar um bom resultado, vai gerar uma questão positiva de fato. Nesse aspecto é muito bom. A gente tem recebido até agora uma boa repercussão, gerando boa reputação, por ser um assunto positivo e ponto. Ninguém vai ser contra isso.
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