"Birdman", o voo da banalidade à arte
O filme conta a história de um ator de cinema decadente que tenta montar uma peça de teatro. Parece pouco, mas é um dos melhores filmes das últimas décadas
IVAN MARTINS, COM NINA FINCO
A fórmula que produz um filme extraordinário é conhecida. Começa com uma grande inovação estética: a forma narrativa tem de ser surpreendente. Continua com uma trama que capture o espírito do tempo – o filme precisa falar ao coração de seus contemporâneos. É imprescindível, claro, que envolva um conjunto de atores de primeira linha, capaz de oferecer atuações indeléveis. Por fim, a carpintaria – música, diálogos, fotografia – precisa cortejar a perfeição, sem lascas ou arestas.
Todos esses elementos, sem exceção, estão presentes em Birdman – Ou a inesperada virtude da ignorância, que estreia agora no Brasil. Indicado para concorrer a nove estatuetas do Oscar – entre elas Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Roteiro Original –, é o filme mais original e inventivo de 2014. Talvez venha a ser reconhecido no futuro como um dos melhores filmes das últimas décadas, mistura de drama, comédia e comentário social como não se via fazia muito tempo. Fosse pouco, ainda é um filme divertidíssimo.
Seu diretor, o mexicano Alejandro Iñárritu, de 51 anos, já tinha no currículo obras memoráveis como Amores brutos (2000), Babel (2006) e Biutiful (2010). Todos tratavam de violência, lidavam com personagens marginalizados e usavam o mesmo formato – um painel de vários personagens e tramas paralelas que, de forma engenhosa, convergiam ao final. Com Birdman, ele mudou tudo. “Depois que a gente faz 40 anos, tudo o que não assusta não merece ser feito”, diz o diretor. “Este filme me assustou de uma forma boa. Era um território novo. Eu estava fora de minha zona de conforto.” Para lembrar os atores do desafio que tinham pela frente, mandou a toda a equipe uma foto do equilibrista francês Philippe Petit, que em 1977 cruzou de uma torre gêmea para outra numa corda bamba.
Birdman é um filme sobre teatro que esconde uma ambição superior: falar dos dilemas modernos entre sucesso e realização, entre arte e banalidade, entre talento e popularidade. Seu personagem principal, o envelhecido e atormentado Riggan Thomson, tenta atuar numa peça difícil, que pode arruiná-lo ou consagrá-lo. É um homem como qualquer outro, metido numa situação excepcional. Desde a primeira cena, divide-se entre a nostalgia dos tempos em que encarnava um super-herói no cinema e a necessidade de provar, 20 anos depois, que tem algum talento como ator. Michael Keaton interpreta Riggan com uma intensidade que quase não se acha no cinema de entretenimento. Ele choca, espanta, faz gargalhar e chorar. É uma atuação extraordinária, em tintas shakespearianas. Quando a plateia se lembra de que ele foi Batman em 1989 e 1992 – e que, depois disso, nunca fez nada popular –, o filme ganha contornos de reality show. Mas Keaton jura que Riggan nada tem a ver com ele, pessoalmente.
A arte orgulhosa do teatro é a casamata ideal para os petardos certeiros de Iñárritu, disparados contra a frivolidade de Hollywood. Riggan luta para preencher o elenco de sua peça, mas todos os bons atores “estão usando uma capa”. O drama deve ser real para produtores de teatro e filmes de arte. No elenco estelar de Birdman, quase todos ganharam dinheiro e popularidade fazendo filmes de aventura. Edward Norton foi Hulk. Emma Stone foi a namorada do Homem-Aranha. Naomi Watson contracenou com King Kong. O hilário barbudinho Zach
Galifianakis ainda não vestiu roupas de malha agarradinhas, mas ficou famoso com as comédias Se beber não case, que jamais serão acusadas de cerebrais.
Galifianakis ainda não vestiu roupas de malha agarradinhas, mas ficou famoso com as comédias Se beber não case, que jamais serão acusadas de cerebrais.
As redes sociais e a fama instantânea que elas produzem é outro alvo de Birdman. A filha de Riggan – interpretada por Emma Stone – tenta explicar ao pai que o reconhecimento que ele persegue precisa de um empurrãozinho do Twitter e do Facebook. Ele recusa, mas acaba virando astro da internet por acidente, numa das sequências hilariantes do filme. “Esta é a definição moderna de realização: as pessoas querem ser famosas imediatamente, não a partir de um corpo de trabalho desenvolvido durante anos”, diz Iñárritu. “Em um segundo, alguém pode ter 800 mil curtidas ou seguidores no Facebook, mas isso é uma ilusão. O imediatismo da mídia social pode distorcer a realidade.”
Na relação conflituosa entre Riggan e suas mulheres – a filha, a ex-mulher e a atual namorada –, revela-se uma das inspirações de Iñárritu, o filme O show deve continuar, de Bob Fosse, lançado em 1979. Nele, um coreógrafo tenta concluir um espetáculo na Broadway enquanto enfrenta o estresse da produção, o efeito deletério das drogas e as demandas das três mulheres de sua vida. Mas as semelhanças femininas terminam aí. As personagens deBirdman são mais que beldades suplicantes. Elas são autônomas e divertidas. Têm algo das criaturas do espanhol Pedro Almodóvar. Se beijam languidamente, seduzem descaradamente, são inteligentes, frágeis, ácidas. O diretor lhes reserva as poucas linhas de sanidade e sabedoria que o filme produz. Num universo de egos delirantes, as mulheres constituem uma reserva de bom-senso e generosidade. No filme de Iñárritu, são elas que dizem a verdade – e geralmente não é aquilo que os homens gostariam de ouvir.
Com elenco extraordinário e uma trama que toca os nervos da modernidade, Birdman também exibe ousadia estética. O filme foi feito em apenas 30 dias, num velho teatro da Rua 44 em Nova York. Quase não houve cortes. Em outra homenagem ao teatro, as cenas foram feitas sem interrupções – e filmadas na ordem em que a história acontece. Normalmente, as tomadas são feitas de acordo com a conveniência de produção e organizadas mais tarde na ordem narrativa. É comum, também, que sejam repetidas várias vezes e capturadas pelas câmeras de diferentes ângulos. Depois, escolhem-se as melhores imagens e monta-se tudo. EmBirdman, não. “Foi a coisa mais difícil que já fiz. Era uma única tomada, vários atores, de uma sala para outra e 15 páginas de diálogo. Não se pode errar”, diz Naomi Watts. “Todo mundo tinha de fazer tudo certo, o tempo todo.” O resultado desse rigor é uma elevada temperatura dramática e uma história que flui sem costuras, como música de câmara. De uma cena para outra, o filme carrega o espectador pela mão.
A carpintaria que amarra a obra beira a perfeição porque, entre outras qualidades, Birdman tem alguns dos melhores diálogos encenados recentemente no cinema. Num deles, Riggan, debruçado sobre o balcão de um bar, acusa a implacável crítica de teatro do jornal The New York Times de ser uma megera covarde, enquanto ele e seus colegas se arriscam todos os dias no palco. Parece haver aí mais que um simples acerto de contas entre artistas e seus predadores naturais. Iñárritu se dirige à própria indústria cinematográfica, que se tornou avessa ao risco e vive de adaptações dos quadrinhos. Birdman voa na contramão dessa tendência. É um filme adulto, feito de maneira inovadora, que enaltece uma arte aparentemente moribunda – o teatro – enquanto ironiza os espetáculos de cinema barulhentos que dão fama e fortuna a seus produtores. Em quatro meses de cartaz nos Estados Unidos, conseguiu US$ 28 milhões de bilheteria. No mesmo período, o filme Os vingadores obteve US$ 620 milhões. Esse é o conflito entre a banalidade e a arte a que o filme de Iñárritu se refere. Ele perde, mas, assim como o personagem de Keaton, sonha em elevar-se acima de tudo no final.
Ninguém é inocente
Os principais atores de Birdman fizeram fama e fortuna como astros de aventuras juvenis
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