Entre a república de bananas e a república de banana split
Extenuada como um náufrago, Cuba diz sim a Obama. Tudo o que deseja é ser americana, como jamais foi
EUGÊNIO BUCCI
Anunciado em dezembro, o abrandamento das tensões entre Cuba e os Estados Unidos trouxe leveza às festas de final de ano. “Somos todos americanos”, disse Barack Obama, em espanhol, em clima de Feliz Natal. A notícia de que o papa Francisco teria atuado nos bastidores, facilitando as negociações, completou com aura beatífica a celebração do congraçamento. Houve até quem fizesse broma, dizendo que o pontífice argentino, conterrâneo de Che Guevara, tinha operado um pequeno milagre.
Com bom humor, o mundo festejou a boa-nova. Só quem reclamou foram alguns dos exilados cubanos na Flórida, os mais ressentidos, e também, é claro, a extrema-direita americana. Os seres humanos normais aplaudiram e, na semana passada, quando surgiram as confirmações de que Havana está libertando prisioneiros que eram acusados de espionagem, aplaudiram ainda mais. Ao menos do lado de cá do Oceano Atlântico, o ano de 2015 será menos acabrunhado do que 2014. As águas do Caribe se acalmam.
A simbologia dessa reaproximação é imensa, muito maior que as insulares dimensões de Cuba e muito mais expressiva que seu modesto potencial econômico. Embora o PIB per capita da ilha alcance, nas estatísticas oficiais, algo como US$ 10 mil por ano, são raríssimos os cubanos que põem no bolso um décimo dessa quantia. Viver em Cuba é padecer no paraíso socialista, um infortúnio tão infernal que muitos preferem arriscar a vida sobre as ondas em embarcações improvisadas na esperança de aportar em Miami. Milhares morreram no caminho. Opositores do regime estimam que, desde que Fidel tomou o poder, em 1959, 100 mil fugitivos perderam a vida no mar (mais ou menos 1% da população de Cuba).
O fluxo migratório é trágico, letal – e não cessa. Agora mesmo, no final de 2014, a guarda costeira americana interceptou 3.722 “balseros” à deriva (dados do início de outubro). Outros 2.129 foram capturados em 2013. Entre setembro de 2013 e setembro de 2014, nada menos que 25 mil cubanos sem documentos conseguiram entrar nos Estados Unidos. O êxodo ainda é menor do que o de 1994, quando 37 mil se lançaram no oceano, mas a situação continua grave. Numa palavra, é insustentável. Com o acordo, a ditadura cubana pede água – água doce, que fique bem claro.
Nessa água está o peso simbólico da reaproximação com Washington. O novo acordo vem selar o epitáfio de uma ilusão longeva, uma promessa igualitária que terminou não numa explosão revolucionária, mas num suspiro diplomático. Por décadas, Cuba foi a suprema inspiração da maioria dos partidos de esquerda nas Américas do Sul e Central, mas sua mística se projetava como um ímã para as esquerdas de todos os países do mundo. Para os europeus, o regime dos Castros era uma espécie de “levante de estimação”. O francês Jean-Paul Sartre via nos guerrilheiros de Sierra Maestra a encarnação do homem novo. Diletantes de muitas nacionalidades se hospedavam em Havana como quem ia passear na Disneylândia proletária e lá se deliciavam em chamar a escassez de solidariedade enquanto discutiam a luta de classes com o garçom, sem desconfiar da opressão perversa por trás das multidões que gritavam palavras de ordem contra o Tio Sam na Praça da Revolução. Agora – bem, agora já era. O que restava de sólido no figurino do comunismo verde-oliva se desmancha no ar. Um dia, a primavera dos povos começava nas areias de Varadero. Agora, o outono de uma utopia repousa numa praia de Key West.
Nesse tempo de distensão e ocaso, voltam a doer os traumas humilhantes de quem, nos tempos de Fulgencio Batista, foi colônia de férias de gringos bêbados. A mais cultuada reserva ecológica dos devaneios anti-imperialistas se debate para não morrer na praia. É triste? Sim, é triste demais.
Há 23 anos, lancei um vaticínio num artigo de jornal (“JFK”, Folha de S.Paulo, 6/2/1992): “Fidel Castro, por exemplo, se cair, devolverá Cuba ao destino de ser república de bananas; se permanecer no poder e abrir as portas para o turismo, fará de seu país uma república de banana split, cheia de americanos desarmados tomando sorvete na praia”. Hoje, constato sem surpresa que as duas tendências se confirmaram. Fidel abdicou do trono em favor de sua caricatura cômica: o irmão menor, Raúl, que parece saído do filme Bananas, de Woody Allen. Quanto à banana split, esta não ficará sob o monopólio da Coppelia, a envelhecida estatal dos helados revolucionários. As sorveterias do Malecón terão as marcas e os sabores do fulgurante capitalismo sem pátria.
Extenuada como um náufrago, Cuba diz sim a Barack Obama. Tudo o que deseja é ser americana, americana como jamais foi.
Com bom humor, o mundo festejou a boa-nova. Só quem reclamou foram alguns dos exilados cubanos na Flórida, os mais ressentidos, e também, é claro, a extrema-direita americana. Os seres humanos normais aplaudiram e, na semana passada, quando surgiram as confirmações de que Havana está libertando prisioneiros que eram acusados de espionagem, aplaudiram ainda mais. Ao menos do lado de cá do Oceano Atlântico, o ano de 2015 será menos acabrunhado do que 2014. As águas do Caribe se acalmam.
A simbologia dessa reaproximação é imensa, muito maior que as insulares dimensões de Cuba e muito mais expressiva que seu modesto potencial econômico. Embora o PIB per capita da ilha alcance, nas estatísticas oficiais, algo como US$ 10 mil por ano, são raríssimos os cubanos que põem no bolso um décimo dessa quantia. Viver em Cuba é padecer no paraíso socialista, um infortúnio tão infernal que muitos preferem arriscar a vida sobre as ondas em embarcações improvisadas na esperança de aportar em Miami. Milhares morreram no caminho. Opositores do regime estimam que, desde que Fidel tomou o poder, em 1959, 100 mil fugitivos perderam a vida no mar (mais ou menos 1% da população de Cuba).
O fluxo migratório é trágico, letal – e não cessa. Agora mesmo, no final de 2014, a guarda costeira americana interceptou 3.722 “balseros” à deriva (dados do início de outubro). Outros 2.129 foram capturados em 2013. Entre setembro de 2013 e setembro de 2014, nada menos que 25 mil cubanos sem documentos conseguiram entrar nos Estados Unidos. O êxodo ainda é menor do que o de 1994, quando 37 mil se lançaram no oceano, mas a situação continua grave. Numa palavra, é insustentável. Com o acordo, a ditadura cubana pede água – água doce, que fique bem claro.
Nessa água está o peso simbólico da reaproximação com Washington. O novo acordo vem selar o epitáfio de uma ilusão longeva, uma promessa igualitária que terminou não numa explosão revolucionária, mas num suspiro diplomático. Por décadas, Cuba foi a suprema inspiração da maioria dos partidos de esquerda nas Américas do Sul e Central, mas sua mística se projetava como um ímã para as esquerdas de todos os países do mundo. Para os europeus, o regime dos Castros era uma espécie de “levante de estimação”. O francês Jean-Paul Sartre via nos guerrilheiros de Sierra Maestra a encarnação do homem novo. Diletantes de muitas nacionalidades se hospedavam em Havana como quem ia passear na Disneylândia proletária e lá se deliciavam em chamar a escassez de solidariedade enquanto discutiam a luta de classes com o garçom, sem desconfiar da opressão perversa por trás das multidões que gritavam palavras de ordem contra o Tio Sam na Praça da Revolução. Agora – bem, agora já era. O que restava de sólido no figurino do comunismo verde-oliva se desmancha no ar. Um dia, a primavera dos povos começava nas areias de Varadero. Agora, o outono de uma utopia repousa numa praia de Key West.
Nesse tempo de distensão e ocaso, voltam a doer os traumas humilhantes de quem, nos tempos de Fulgencio Batista, foi colônia de férias de gringos bêbados. A mais cultuada reserva ecológica dos devaneios anti-imperialistas se debate para não morrer na praia. É triste? Sim, é triste demais.
Há 23 anos, lancei um vaticínio num artigo de jornal (“JFK”, Folha de S.Paulo, 6/2/1992): “Fidel Castro, por exemplo, se cair, devolverá Cuba ao destino de ser república de bananas; se permanecer no poder e abrir as portas para o turismo, fará de seu país uma república de banana split, cheia de americanos desarmados tomando sorvete na praia”. Hoje, constato sem surpresa que as duas tendências se confirmaram. Fidel abdicou do trono em favor de sua caricatura cômica: o irmão menor, Raúl, que parece saído do filme Bananas, de Woody Allen. Quanto à banana split, esta não ficará sob o monopólio da Coppelia, a envelhecida estatal dos helados revolucionários. As sorveterias do Malecón terão as marcas e os sabores do fulgurante capitalismo sem pátria.
Extenuada como um náufrago, Cuba diz sim a Barack Obama. Tudo o que deseja é ser americana, americana como jamais foi.
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