Ao Vivo

31 de março de 2015

O recado das vítimas dos anticoncepcionais

A luta de um grupo de mulheres pela informação sobre os riscos das pílulas representa um novo jeito de ser paciente

CRISTIANE SEGATTO

A professora Carla Simone Castro, que procurou a colunista Cristiane Segatto, pedindo que ela fizesse uma reportagem sobre os riscos e benefícios dos anticoncepcionais (Foto: ÉPOCA)
O vergonhoso desempenho educacional do Brasil emperra o país de várias maneiras. Uma das consequências mais cruéis da ignorância é a perda da saúde. A falta de informação não só contribui para o adoecimento como impede que os cidadãos reflitam sobre os cuidados médicos que recebem. De forma geral, os pacientes brasileiros são excessivamente passivos. Não questionam nada nem ninguém.
Quando um deles rompe esse padrão de forma contundente, as razões que o movem devem, no mínimo, ser conhecidas. Foi o que senti quando fui procurada pela professora Carla Simone Castro, de Goiânia, em outubro do ano passado. Ela pedia que eu fizesse uma investigação jornalística abrangente sobre os riscos e benefícios dos anticoncepcionais.
Professora universitária prestes a concluir o doutorado, Carla havia sido surpreendida, aos 41 anos, por uma trombose cerebral sete meses depois de começar a tomar a pílula Yasmin, daBayer. Teve três acidentes vasculares cerebrais (AVC) e, durante 55 dias, mal conseguia enxergar. Naquela mesma semana, contei a história aqui, mas era preciso ir além.
Uma discussão que diz respeito a 11 milhões de consumidoras de pílulas anticoncepcionaisno Brasil (e também a seus parceiros e familiares) merecia ser aprofundada. É o que ÉPOCA faz na reportagem de capa desta semana ao narrar em detalhes histórias de mulheres que descobriram – tarde demais – que jamais deveriam ter tomado um anticoncepcional hormonal. Ao lado, os relatos que elas mesmas gravaram em vídeo.
É o caso da pedagoga Daniele Medeiros Alvarenga, de 33 anos. Ela é portadora de uma condição genética (chamadatrombofilia) que aumenta em até 30 vezes o risco de formação de coágulos na corrente sanguínea de mulheres que usam hormônios. Daniele diz ter mencionado a trombofilia quando uma ginecologista sugeriu que ela usasse a pílula Yasminpara tratar cistos ovarianos. “Ela respondeu que, nesse caso, receitaria uma pílula com baixa dosagem hormonal”, afirma Daniele.
A paciente se convenceu e tomou o remédio. Depois de três meses, sofreu uma embolia pulmonar. Isso acontece quando um coágulo formado em alguma veia do corpo chega aos pulmões e obstrui a passagem do sangue por uma artéria.
As consequências foram gravíssimas. Três paradas cardíacas, dois meses de internação, 40 dias em coma. Daniele se salvou por pouco, mas os medicamentos que a mantiveram viva na UTI provocaram uma sequela permanente: a necrose e amputação dos dez dedos dos pés.
Daniele foi vítima do desrespeito às recomendações da Organização Mundial da Saúde para o uso seguro de anticoncepcionais. Mulheres com o perfil genético dela não devem tomar hormônios. Isso está escrito explicitamente no documento da OMS. Infelizmente, muitos prescritores de pílula não o conhecem.
Esse é um problema que até mesmo as entidades de classe reconhecem. “Os ginecologistas precisam ter critério para recomendar esses remédios”, diz a médica Marta Franco Finotti, presidente da Comissão Nacional Especializada em Anticoncepção da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “Se todos eles seguissem as normas da OMS, já seria maravilhoso.”
Os estudos disponíveis revelam que danos graves (trombose, embolia pulmonar, AVC etc) em consumidoras de pílula anticoncepcional são raros. No período de um ano, ocorrem cerca de 10 casos a cada 10 mil consumidoras de medicamentos à base de drospirenona (uma das substâncias da pílula Yasmin). A estimativa é da agência europeia que regula medicamentos (EMA). “As pílulas são seguras, usadas por 100 milhões de mulheres no mundo e até mais estudadas que os antibióticos”, diz Marta.
Ainda assim, casos gravíssimos como o de Carla e Daniele acontecem. Ninguém pretende fazer campanha contra a pílula. Isso seria uma insanidade, principalmente num país onde, todos os anos, 13 milhões de adolescentes se tornam mães. O ponto é outro e diz respeito à autonomia do paciente.
É inadmissível que a informação sobre os riscos continue a ser sonegada das mulheres que buscam uma forma de evitar a gravidez. Elas precisam conhecê-los para tomar uma decisão consciente. Precisam entender que a pílula não é a única forma eficaz de contracepção e assumir o controle das decisões sobre o seu corpo. A reportagem de ÉPOCA traz uma comparação dos riscos e benefícios dos diferentes métodos e das diversas formulações de pílula.
Cercar-se de informação foi exatamente o que Carla decidiu fazer quando recebeu o diagnóstico de trombose cerebral, uma doença que não conhecia. Ali mesmo, na cama do hospital, ela agarrou o celular e começou a buscar artigos científicos que relacionassem o problema ao uso de pílula. Encontrou centenas de referências.
A história de Carla ganhou as redes sociais depois que um aluno decidiu postar um vídeo em que ela contava todo o sofrimento decorrente da decisão de tomar a pílula. Mulheres de todo o Brasil começaram a procurá-la e a enviar vídeos com relatos semelhantes. Assim nasceu no Facebook a página Vítimas de Anticoncepcionais – Unidas a Favor da Vida, uma comunidade que já soma 28 mil pessoas.
Antes de Carla, as vítimas estavam isoladas. Cada uma aceitava a explicação de que era uma raridade e, bem ou mal, tentava se conformar com a falta de sorte. Carla uniu essas mulheres porque é uma paciente incomum que decidiu fazer pesquisa científica com as próprias mãos.
A professora já conseguiu reunir relatos de 305 casos de reações graves ocorridas em brasileiras. Compilou informações sobre saúde e dados adicionais como nome, endereço, renda familiar, circunstâncias em que os problemas ocorreram etc. Os principais achados estão publicados na reportagem de ÉPOCA. Ela descobriu, entre outras coisas, que 92% das mulheres que sofreram danos graves não haviam sido alertadas pelo ginecologista sobre o risco de trombose.
O próximo passo de Carla é mais ousado. Pretende se associar a médicos e outros pesquisadores para investigar cada um dos relatos que já conseguiu reunir. Quer publicar um trabalho com rigor e validade científica. “Não podemos aceitar que continuem dizendo que esses casos são raros no Brasil, se ninguém os relata e os investiga”, diz.
Carla é uma boa notícia. Não apenas pela discussão relevante que desperta como pelo tipo de paciente que simboliza. Aquele que busca informação, tem apreço pelo conhecimento científico e plena consciência de que saber é poder. 

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