Até o fim do ano, você beberá água do esgoto
A água de reúso potável deverá chegar aos bebedouros de São Paulo até dezembro. Apesar dos preconceitos, é uma solução amigável para a falta de água em nossas cidades
MARCELO MOURA COM HARUMI VISCONTI E ALINE IMERCIO
"Água potável é insípida, incolor e inodora. Por favor, sublinhem no livro as palavras ‘insípida’, ‘incolor’ e ‘inodora’.” Lembro-me das aulas da Tereza Cristina, professora de ciências da minha 3ª série, ao encarar a garrafa sobre a mesa. O que tem dentro dela é água potável? Parece que sim. O líquido é incolor, tanto quanto é possível avaliar a olho nu. Tem cheiro de cloro: mais do que o habitual a uma água de filtro e menos do que a água de piscina. Ainda assim, resisto a beber. Tenho reservas sobre seu passado. Doze horas antes de chegar à garrafa, esse líquido era esgoto, com tudo de tóxico e nojento que um esgoto pode ter. Foi transformado em água cristalina por umaestação de tratamento de água de reúso de uma empresa de São Paulo – uma das duas dezenas de usinas de alta qualidade, particulares, em funcionamento no país. Se os cronogramas forem cumpridos, a água de reúso potável chegará aos bebedouros de São Paulo até o final do ano.
Pela legislação, essas estações só podem produzir água reciclada para fins menos nobres, como lavar chão ou regar plantas. Por precaução, o governo de São Paulo lançará a água proveniente do esgoto na região de mananciais, onde é posteriormente tratada para consumo. “Na prática, a água de reúso de alta qualidade atende a todas as exigências sanitárias de uma água potável”, afirma Fernando Pereira, gerente de vendas da General Water, fornecedora de estações de tratamento para empresas. “Confio mais nesse esgoto supertratado do que na água do Sistema Cantareira.” Pereira serve a garrafa. Levanto o copo contra a luz e o encaro como um sommelier, num misto de curiosidade e medo.
Mais e mais pessoas estão perdendo o medo de beber água de reúso. Em janeiro, Bill Gates, fundador da Microsoft, molhou os lábios na água produzida pelo Janicki Omniprocessor, estação de tratamento de esgoto com o tamanho de dois ônibus, capaz de transformar fezes em água potável, eletricidade e fertilizante (leia o quadro abaixo). “É água”, diz, em um vídeo que rodou o mundo. A fundação do empresário, Bill & Melinda Gates, quer distribuir miniusinas pela África, a fim de proporcionar água limpa e tratamento de esgoto a países hoje incapazes de pagar por esse serviço. “Mais de 2,5 bilhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico”, diz Gates. O Omniprocessor promete transformar uma atividade cara em algo rentável. “O operador da usina poderá ganhar dinheiro ao tratar o esgoto e ainda vender água potável de reúso, eletricidade e fertilizante”, diz Peter Janicki, inventor da máquina. Após a degustação de Gates, nos Estados Unidos, a usina foi enviada ao Senegal, para testes com o público.
Em São Paulo, o governador Geraldo Alckminanunciou em novembro passado a construção de duas estações de tratamento de esgoto de alta qualidade, para abastecer os sistemas Guarapiranga e Alto Cotia com água suficiente para abastecer 900 mil pessoas. Em Campinas, no interior do Estado, uma estação que produz água não potável, para lavar chão e regar plantas, será aprimorada para atender ao consumo humano. Essas estações podem produzir 75 litros de água potável para cada 100 litros de esgoto, a um custo compatível com o da água de manancial. “As empresas pagam por nossa água a metade do que pagavam àSabesp”, diz Renato Medeiros, diretor da Aquapolo, em São Paulo, quinta maior usina de tratamento de água de reúso do mundo. Se os cronogramas forem cumpridos, será a primeira experiência no Brasil de emprego de água de reúso como fonte de abastecimento. Esse esgoto supertratado será misturado a água de rio, nos mananciais, para receber o tratamento normalmente dado à água potável.
De certa forma, toda água que consumimos é reciclada. O líquido que abastece as metrópoles brasileiras já serviu a dinossauros, há milhões de anos. O planeta é um grande purificador de água, com micro-organismos decompositores, infiltração através de rochas e decantação por gravidade. Mas a natureza é lenta em sua reciclagem, incapaz de transformar o esgoto de grandes populações em água potável para consumo imediato. Para contornar a lentidão da natureza, o Império Romano desenvolveu aquedutos para despejar o esgoto perto e buscar água potável longe. “Dois mil anos depois, ainda usamos a mesma técnica”, diz Pereira. As limitações dessa técnica arcaica explicam a crise hídrica de São Paulo. Não falta água. A Represa Billings está 98% cheia, com dez vezes o volume do Sistema Cantareira. Mas não pode ser usada, porque sua água está poluída pelo lançamento de esgoto tratado – que, apesar do nome, está longe de ser limpo – e esgoto sem tratamento algum. Incapaz de explorar o potencial de reservatórios poluídos, São Paulo está construindo 83 quilômetros de tubulação para ligar a capital à bacia hidrográfica do São Lourenço, ao custo estimado de R$ 1,6 bilhão. “Estou torcendo para não chover”, diz Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água, da Universidade de São Paulo (USP). “Finalmente agora, com a ameaça de faltar água, conseguimos chamar a atenção para soluções modernas.”
A água potável vinda do esgoto nem é tão moderna assim. Foi adotada em larga escala pela primeira vez em 1968, em Windhoek, capital da Namíbia, com clima desértico. Hoje, 14% da água potável da cidade vem diretamente da estação de tratamento de esgoto. Cingapura, em 2003, passou a distribuir esgoto tratado para uso não potável, a fim de reduzir a importação de água. Até 2060, o país espera tornar a água de reúso sua principal fonte de abastecimento hídrico, com 55% de participação. Em 2013, o PUB – departamento de água e esgoto de Cingapura – passou a misturar o esgoto tratado à água potável. Para vencer a resistência do público, o PUB promove com orgulho sua água de reúso. Criou um nome com apelo publicitário, NEWater, e distribui o líquido em garrafinhas.
As experiências de Namíbia e Cingapura encorajam mais de 40 projetos de tratamento de esgoto para reúso potável em países como Austrália, Áustria, Bélgica, Estados Unidos e México. Encorajam, mas não garantem sucesso. País pobre e desértico, a Namíbia não tinha muitas opções. Apesar de rica, Cingapura não é uma democracia plena. Em 2006, durante uma seca severa, a Austrália anunciou um plebiscito para decidir se usaria esgoto tratado para abastecimento. Quando pesquisas de opinião mostravam rejeição, o governo desistiu da consulta e impôs a decisão, dizendo não ter alternativa. “O difícil não é fazer água reciclável, mas convencer as pessoas a beber”, diz Paul Rozin, professor de psicologia da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, autor de uma pesquisa de opinião sobre a água de reúso potável. “O problema não será resolvido por engenheiros, mas por psicólogos.”
Desconfiar da água de reúso é plenamente justificável. Sua matéria-prima é esgoto sanitário – um caldo de vírus, bactérias e todo tipo de substância tóxica ao organismo. Os operadores de usinas de tratamento se defendem. “O tratamento da água dos rios não remove substâncias como hormônios e cafeína. Parte-se da ilusão de que os mananciais não são contaminados”, diz Pereira. “A produção de água de reúso potável usa filtros capazes de barrar bactérias e radiação ultravioleta para esterilização.” Depois da explicação de engenheiro, o gerente da General Water apelou ao lado psicológico. Tomou seu copo num único trago, não sem antes propor um brinde: “Saúde!”. “Saúde”, respondi, e tomei também. Nunca diga “desta água não beberei”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário