VIDA
Em 'O homem irracional', Woody Allen mistura crime e filosofia
No filme, consagrado no Festival de Cannes, o diretor filosofa sobre o desamparo dos homens diante do mistério absoluto da morte
RODRIGO FONSECA| DE CANNES
O biógrafo oficial de Woody Allen, o escritor Eric Lax, criou uma classificação da filmografia do
cineasta nova-iorquino, em que ele divide sua produção em três gêneros principais de obras: comédias de amor, dramas existenciais e histórias sobre contravenções. As representações sobre crimes, que tiveram um apogeu em Crimes e pecados (1989), servem para Woody exercitar um de seus prazeres preferidos no cinema: mostrar que existe uma estética no Mal. Por vezes, essa centelha de criminalidade gera chanchadas, como é o caso de Trapaceiros (2000), mas pode também render thrillers sem lugar para o riso, como o subestimadoO sonho de Cassandra (2007).
É a essa linhagem que se filia a crônica da crise de angústia do professor de filosofia Abe Lucas, vivido por Joaquin Phoenix em O homem irracional, 46º longa-metragem de Woody, que teve sua primeira exibição mundial, na semana passada, no Festival de Cannes, fora da competição pela Palma de Ouro. Aplaudido pela crítica como um dos melhores filmes de Woody nas últimas décadas,O homem irracional trafega por um terreno onde o cineasta se sente muito confortável: as teorias filosóficas que vão de Immanuel Kant (1724-1804) a Jean-Paul Sarte (1905-1980). O cenário não é a Nova York idílica de Woody, mas Newport e Providence, duas cidades vizinhas do Estado de Rhode Island, nos Estados Unidos, com ambiente universitário e praias ao redor. A escolha de Rhode Island tem um significado simbólico para Woody: o Estado foi o primeiro entre as antigas 13 colônias britânicas, embrião dos Estados Unidos da América, a declarar sua independência do Reino Unido, no século XVIII. Um lugar que lutou por sua autonomia política e intelectual torna-se o cenário para Woody mostrar que um assassinato pode ganhar requintes de obra de arte quando ele expõe a identidade e as ambições individuais do criminoso.
A princípio, tudo na vida universitária de Newport é movido pela paralisia de emoções. Alunos e educadores cumprem suas tarefas pela inércia. Mas a chegada de um docente com porte de galã mexe com a libido das mulheres, em especial a da professora Rita (Parker Posey) e da aluna Jill (Emma Stone, nova musa do diretor, com quem ele rodara em 2014 Magia ao luar). Mas o personagem Lucas não corresponde à expectativa por um herói apolíneo, cheio de virtudes físicas. Barrigudo e impotente, Lucas é a depressão em pessoa, por causa de traumas que nunca são devidamente explicados. Fala-se de uma desilusão amorosa, ao mesmo tempo que se especula sobre uma questão pessoal ligada à Guerra do Iraque. Enfim... o príncipe encantado da filosofia não faz jus ao que se esperava dele: Lucas chega com os tiques dos anti-heróis típicos dos filmes de Woody, cheio de neuroses e de fraquezas ante o sexo feminino. De cara, ele ganha a simpatia dos fãs do diretor, dando a O homem irracional o tom de comédia de costumes que deu fama ao diretor de Meia-noite em Paris (2011).
cineasta nova-iorquino, em que ele divide sua produção em três gêneros principais de obras: comédias de amor, dramas existenciais e histórias sobre contravenções. As representações sobre crimes, que tiveram um apogeu em Crimes e pecados (1989), servem para Woody exercitar um de seus prazeres preferidos no cinema: mostrar que existe uma estética no Mal. Por vezes, essa centelha de criminalidade gera chanchadas, como é o caso de Trapaceiros (2000), mas pode também render thrillers sem lugar para o riso, como o subestimadoO sonho de Cassandra (2007).
É a essa linhagem que se filia a crônica da crise de angústia do professor de filosofia Abe Lucas, vivido por Joaquin Phoenix em O homem irracional, 46º longa-metragem de Woody, que teve sua primeira exibição mundial, na semana passada, no Festival de Cannes, fora da competição pela Palma de Ouro. Aplaudido pela crítica como um dos melhores filmes de Woody nas últimas décadas,O homem irracional trafega por um terreno onde o cineasta se sente muito confortável: as teorias filosóficas que vão de Immanuel Kant (1724-1804) a Jean-Paul Sarte (1905-1980). O cenário não é a Nova York idílica de Woody, mas Newport e Providence, duas cidades vizinhas do Estado de Rhode Island, nos Estados Unidos, com ambiente universitário e praias ao redor. A escolha de Rhode Island tem um significado simbólico para Woody: o Estado foi o primeiro entre as antigas 13 colônias britânicas, embrião dos Estados Unidos da América, a declarar sua independência do Reino Unido, no século XVIII. Um lugar que lutou por sua autonomia política e intelectual torna-se o cenário para Woody mostrar que um assassinato pode ganhar requintes de obra de arte quando ele expõe a identidade e as ambições individuais do criminoso.
A princípio, tudo na vida universitária de Newport é movido pela paralisia de emoções. Alunos e educadores cumprem suas tarefas pela inércia. Mas a chegada de um docente com porte de galã mexe com a libido das mulheres, em especial a da professora Rita (Parker Posey) e da aluna Jill (Emma Stone, nova musa do diretor, com quem ele rodara em 2014 Magia ao luar). Mas o personagem Lucas não corresponde à expectativa por um herói apolíneo, cheio de virtudes físicas. Barrigudo e impotente, Lucas é a depressão em pessoa, por causa de traumas que nunca são devidamente explicados. Fala-se de uma desilusão amorosa, ao mesmo tempo que se especula sobre uma questão pessoal ligada à Guerra do Iraque. Enfim... o príncipe encantado da filosofia não faz jus ao que se esperava dele: Lucas chega com os tiques dos anti-heróis típicos dos filmes de Woody, cheio de neuroses e de fraquezas ante o sexo feminino. De cara, ele ganha a simpatia dos fãs do diretor, dando a O homem irracional o tom de comédia de costumes que deu fama ao diretor de Meia-noite em Paris (2011).
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Durante um papo de restaurante, Lucas descobre o drama de uma jovem refém das ações corruptas de um juiz. Ele se dá conta então de que o motor da vida não são ideias, são atitudes. O desejo de matar o tal magistrado passa a reger seu dia a dia, dando a ele disposição para lecionar, comer, beber e amar, tendo a voracidade sexual de Rita de um lado e o lirismo apaixonado de Jill do outro. “Lucas pertence à estirpe dos filósofos modernos, com uma atitude proativa, de ação, que mudou a história do pensamento”, diz Woody.
Ao se deixar contagiar pelo vírus da maldade, Lucas muda, e o filme também: o que era bem-humorado vai ficando soturno; o que era comédia vira suspense. O Woody Allen do quá-quá-quá cabeça que todos conhecem dá lugar a um pensador do cinismo e da crueldade, que se expressa com uma crônica sobre o mergulho de um pensador na irracionalidade plena. Essa conversão se materializa com grande esmero visual. A fotografia do filme é assinada pelo iraniano Darius Khondji, alvo de elogios dos críticos das mais variadas línguas presentes no Festival de Cannes.
Durante um papo de restaurante, Lucas descobre o drama de uma jovem refém das ações corruptas de um juiz. Ele se dá conta então de que o motor da vida não são ideias, são atitudes. O desejo de matar o tal magistrado passa a reger seu dia a dia, dando a ele disposição para lecionar, comer, beber e amar, tendo a voracidade sexual de Rita de um lado e o lirismo apaixonado de Jill do outro. “Lucas pertence à estirpe dos filósofos modernos, com uma atitude proativa, de ação, que mudou a história do pensamento”, diz Woody.
Ao se deixar contagiar pelo vírus da maldade, Lucas muda, e o filme também: o que era bem-humorado vai ficando soturno; o que era comédia vira suspense. O Woody Allen do quá-quá-quá cabeça que todos conhecem dá lugar a um pensador do cinismo e da crueldade, que se expressa com uma crônica sobre o mergulho de um pensador na irracionalidade plena. Essa conversão se materializa com grande esmero visual. A fotografia do filme é assinada pelo iraniano Darius Khondji, alvo de elogios dos críticos das mais variadas línguas presentes no Festival de Cannes.
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Um filósofo em especial serve a Woody: o dinamarquês SØren Kierkegaard (1813-1855), que, no livro Temor e tremor, parte do mito bíblico do sacrifício de Abraão, no Velho Testamento, como metáfora para a condição “irretrocedível” do homem diante do mistério absoluto. O mistério de O homem irracional, o filme, é a morte, e Woody vai desenhá-la na tela numa narrativa sedutora que, por um momentinho, evoca um outro mestre da tela grande: Alfred Hitchcock.
Um filósofo em especial serve a Woody: o dinamarquês SØren Kierkegaard (1813-1855), que, no livro Temor e tremor, parte do mito bíblico do sacrifício de Abraão, no Velho Testamento, como metáfora para a condição “irretrocedível” do homem diante do mistério absoluto. O mistério de O homem irracional, o filme, é a morte, e Woody vai desenhá-la na tela numa narrativa sedutora que, por um momentinho, evoca um outro mestre da tela grande: Alfred Hitchcock.
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