A economia tem moral?
A França se recusa a incluir no PIB a prostituição ilegal e o comércio de drogas ilícitas. A decisão obriga outros governos a pensar em como fazem suas contas
MARCOS CORONATO E RUAN DE SOUSA GABRIEL
A UE, os governos concordantes e uma corrente de economistas tratam o assunto como uma tecnicalidade menor. Coube aos franceses explicitar os detalhes inconvenientes da novidade, apesar das críticas de que são moralistas. “Ao afirmar que essas transações não devem ser incluídas no PIB, o governo francês colocou uma visão moral do que a sociedade deveria ser à frente da visão econômica do que a sociedade é”, diz o consultor de finanças americano Zachary Karabell.
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Os governos pensaram principalmente em prostituição e drogas, porque, na maioria dos países, esses dois mercados já se situam numa zona cinzenta entre o que deve ser permitido e o que tem de ser proibido. O Senado francês debate, atualmente, se deve seguir o modelo nórdico e criar multas para os clientes de prostitutas, sem contudo tornar a prostituição ilegal. A UE não fez exigências específicas sobre esses dois mercados. Apenas instruiu os países-membros a considerar, no PIB, todo tipo de transação (mesmo ilegal) em que os dois lados estejam de comum acordo e não haja coerção. A própria norma da UE já embute alguma moralidade, pois exclui atividades em que um dos participantes sofra coerção, por mais produtiva que seja. Trabalho escravo não conta. No caso específico das prostitutas, diz o governo francês, é difícil definir que parcela trabalha por livre vontade. “Há prostituição de rua que resulta de redes mafiosas e tráfico de imigrantes ilegais. Não se verifica aí o critério do consentimento mútuo”, diz Eric Dubois, diretor de estudos econômicos do Insee, órgão de pesquisas do governo francês. Dubois questionou também o grau de consentimento existente entre os dependentes de drogas pesadas. A extrema-direita francesa reagiu com a estridência esperada. Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, disse que integrar ao PIB a “criação de riqueza imoral” contradiz os valores democráticos.
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Não é preciso entrar no nebuloso campo da moralidade, porém, para ver perigos na iniciativa da UE. Há uma ameaça de contagem dupla. Dubois lembrou que grande parte da prostituição ocorre de forma discreta, associada a negócios legais, como casas noturnas. Nesse caso, ela já é contada no PIB. O mesmo ocorre no Brasil. O IBGE já inclui no cálculo do PIB o que os cidadãos dizem faturar por mês, sem questionar a origem do dinheiro.
Oficialmente, a mudança na Europa servirá apenas para tornar uniformes as contas dos países-membros. Isso é importante porque os limites anuais de deficit e dívida dessas nações são definidos em função do PIB (3% e 60%, respectivamente). Mesmo sem incluir atividades do submundo, o cálculo do PIB já é uma tarefa extremamente difícil, repleta de projeções, estimativas e suposições. O governo britânico tomou a dianteira em tentar mostrar a robustez de suas contas. Um documento de 20 páginas explica como medir mercados como heroína e prostituição (os técnicos concluíram que, no país, cerca de 60 mil prostitutas recebem 25 clientes por semana e cobram, em média, £ 67). Mas o Reino Unido é uma exceção, com um banco de dados bem organizado e um longo histórico na tentativa de cobranças de impostos das prostitutas. Na maioria dos países, estimativas sobre esses mercados usam dados menos confiáveis que os que compõem tradicionalmente o PIB. Incluí-los na conta afetará um cálculo já tortuoso. A UE divulgará, até outubro, orientações sobre como tornar esses cálculos mais, digamos, respeitáveis.
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