O Brasil está preparado para o ebola?
A rápida reação diante do primeiro caso suspeito é um bom sinal. Mas não basta. Há muito a fazer se o país quiser evitar a disseminação do vírus
CRISTIANE SEGATTO E VINICIUS GORCZESKI
Felizmente, ainda não foi desta vez. A confirmação de que o africano Souleymane Bah, de 47 anos, não tem o vírus ebola
permitiu que a população brasileira e as autoridades respirassem
aliviadas. Pode ser por pouco tempo. A capacidade de reação do Brasil
diante da possibilidade de chegada do mais temível dos vírus
transmissíveis entre humanos foi posta à prova quando Bah, sentindo-se
febril, procurou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Cascavel, no
interior do Paraná. Os funcionários dispararam o alerta geral assim que
ele revelou ter chegado da Guiné três semanas antes. Com Libéria e
Serra Leoa, a Guiné é um dos três países afetados pelo mais grave surto
de ebola em toda a história. Uma tragédia que já deixou 8 mil infectados
e 4.400 mortos – a maioria nesses três países africanos. Segundo a
previsão sombria da Organização Mundial da Saúde (OMS), nos próximos
dois meses o número de novas infecções poderá chegar a 10 mil por
semana.
A transmissão do ebola em países desenvolvidos, como Estados Unidos
(duas enfermeiras foram infectadas ao cuidar de doentes vindos da
África) e Espanha, revela que essa é uma emergência global. Para
surpresa dos brasileiros, acostumados às fragilidades do SUS, a equipe
paranaense soube agir de acordo com o plano de contingência estabelecido
pelo Ministério da Saúde. A reação rápida foi um bom indício. Em se
tratando de ebola, uma praga que, no atual surto africano, mata um em
cada dois infectados, até mesmo aquilo que parece cuidado excessivo pode
ser insuficiente. “Sempre é melhor agir em excesso que não agir”, diz o
cientista Peter Piot, um dos descobridores do vírus, em 1976.>> Cristiane Segatto: O chikungunya, primo da dengue, deveria assustar mais que o ebola
O sucesso na condução do primeiro caso suspeito não significa que o Brasil esteja blindado. Nenhuma nação está. Desde que o mundo se tornou pequeno, graças à intensa movimentação de viajantes entre os continentes, a disseminação de vírus é apenas questão de tempo. É provável que o ebola chegue ao país nas próximas semanas. É possível que os primeiros contaminados em solo brasileiro sejam os profissionais de saúde escalados para atender doentes vindos do exterior. Ainda assim, infectologistas, entidades médicas e governo afirmam que não há razão para pânico. “Nenhum país do mundo está livre de receber um viajante com o vírus”, diz Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. “Mas o risco de um surto de ebola no Ocidente é praticamente zero.” O Brasil tem condições de isolar os primeiros casos e evitar a expansão da ameaça – desde que tudo corra como o planejado em cinco importantes etapas. A análise de cada uma delas revela que há muito a aprimorar se o Brasil quiser evitar o pior.
PORTOS E AEROPORTOS
Todos os dias, 250 mil pessoas circulam pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo. São 106 mil passageiros, o maior número em toda a América Latina. É alta a probabilidade de que o primeiro caso chegue ao Brasil por essa porta. Apesar disso, o assunto “ebola” parece não ter chegado ao aeroporto. O sistema de som avisa que viajantes com febre, vômito, sangramentos, manchas no corpo, fraqueza e diarreia devem procurar atendimento médico – mas a gravação não menciona a palavra ebola. ÉPOCA passou a quarta-feira, dia 15, no aeroporto. Não havia panfletos, cartazes ou funcionários que dessem orientações sobre a doença. Barbosa, do Ministério da Saúde, diz que medidas como essa se mostraram pouco eficazes em outros surtos, como a gripe H1N1. A falta de investimento em informação pode cobrar um preço alto. Pilotos, comissários e funcionários de companhias aéreas disseram que não receberam orientação ou treinamento das empresas sobre como proceder nos casos de suspeita de ebola em voo ou solo. Todos se disseram apreensivos. “Os funcionários, especialmente os que limpam os banheiros das aeronaves ou que têm contato com passageiros de voos internacionais, dizem que estão sem informações. Têm medo”, diz Selma Balbino, diretora executiva do Sindicato Nacional dos Aeroviários. A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) afirma que as companhias aéreas conduziram dois testes simulados, no Rio de Janeiro e em São Paulo, para treinar os profissionais. A falta de atenção ao risco de chegada do ebola causou estranheza ao angolano Antônio Gervásio, de 21 anos. Ele mora no Brasil desde 2011. “Se a doença chegou a um país como os Estados Unidos, tão rigoroso no controle de passageiros na fronteira, imagine o que pode acontecer em países onde os passageiros entram sem grandes dificuldades”, disse, enquanto cumprimentava a amiga Clara da Silva, de 23 anos. Ela acabara de desembarcar de um voo vindo de Luanda, capital de Angola.
>> No aeroporto de Guarulhos, muita tensão e pouca informação sobre o ebola
Se um passageiro com os sintomas típicos da doença chegar ao aeroporto de Guarulhos e tiver a boa vontade de relatar seu caso no posto de atendimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), será avisado, como ÉPOCA foi, de que deveria procurar um posto de atendimento da GRU Airport, administradora do aeroporto. Se persistisse na determinação de relatar o caso, o estrangeiro ouviria um jogo de empurra numa língua desconhecida. A GRU informa que a responsabilidade em casos como esse é da Anvisa. O Ministério da Saúde afirma que a equipe da Anvisa já está apta a atender a casos de ebola.
O bate-cabeça também ocorre nas dezenas de portos marítimos. Desde janeiro, só Santos, no litoral paulista, recebeu 3.400 embarcações e mais de 485 mil passageiros. A temporada de cruzeiros começará em novembro, com previsão de alcançar 790 mil turistas. Até este mês, passaram pelo porto 23 embarcações de carga da Guiné, 19 de Serra Leoa e nove da Libéria. Os trabalhadores brasileiros temem ser infectados por tripulantes estrangeiros, embora o ebola só seja transmitido durante o período em que o doente apresenta sintomas (leia a ilustração na página 74). Os mais preocupados são os práticos, profissionais que manobram os navios pelo cais do porto. “Só sabemos a origem do navio no momento em que ele chega, e somos obrigados a entrar nele”, diz Everandy Cirino, presidente do Sindicato dos Empregados na Administração Portuária. “Tivemos reuniões técnicas com Anvisa e Ministério da Saúde, mas não recebemos nenhuma orientação prática.”
POSTOS DE SAÚDE, PRONTO-SOCORROS E HOSPITAIS
Não seria realista imaginar que todos os centros de atenção primária estejam preparados para cumprir o plano definido pelo Ministério da Saúde. “Não podemos ser ufanistas a ponto de dizer que o Brasil está plenamente preparado para lidar com o ebola”, afirma o médico Érico Arruda, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia. “É improvável que todas as unidades sejam capazes de identificar e lidar com um caso suspeito, como fez a equipe de Cascavel.” Isso não quer dizer que o Brasil corra o risco de virar a Libéria. Não corre. Ao contrário dos países atingidos na África, o sistema de saúde brasileiro tem uma boa capilaridade. Até os menores municípios têm um programa de saúde da família ou unidades básicas de atendimento, por mais que a qualidade dos serviços seja desigual. O que mais preocupa os especialistas é a difícil relação entre os municípios, Estados e União. Por mais que o Ministério da Saúde tenha estipulado um plano nacional para lidar com a chegada do ebola, o dinheiro para executar as ações sai dos orçamentos municipais. “Muitas cidades não têm equipamentos para garantir a segurança dos profissionais nem foram informadas pelas secretarias estaduais sobre os fornecedores desse tipo de material”, diz Arruda. Há questionamento também em relação à opção do governo federal por indicar apenas dois hospitais para o atendimento de pacientes com suspeita da doença – o Evandro Chagas, no Rio, e o Emílio Ribas, em São Paulo. Os infectologistas defendem a ampliação dessa rede para unidades de referência em Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal e cidades do Nordeste. Isso evitaria longos deslocamentos dos pacientes e rapidez no isolamento e início do tratamento.
PROTEÇÃO DA COMUNIDADE
Mapear quem teve contato com os doentes é um item fundamental no controle de epidemias. O surto africano atingiu a proporção atual porque os países não tinham estrutura para tomar essa e outras medidas básicas. Para fazer o mapeamento como se deve, os Estados e municípios precisam contar com equipes adequadas de epidemiologistas. Eles entrevistam os pacientes e familiares, para identificar todas as pessoas com quem o infectado possa ter tido contato – antes mesmo da confirmação laboratorial da presença do vírus. Essas pessoas não precisam ficar em isolamento, caso não tenham sintomas da doença. A temperatura de todas deve ser registrada diariamente durante 21 dias – o prazo máximo para o aparecimento de sinais da doença. Foi assim que a equipe de Cascavel chegou às 64 pessoas que tiveram contato com Souleymane Bah. Quando esse trabalho é bem feito, é improvável que o vírus se dissemine. O ebola não é transmitido pelo ar nem por picada de mosquito. Só pega a doença quem tem contato com fluidos corporais – lágrima, suor, vômito, sangue, sêmen – no período em que o paciente já manifesta sintomas.
O maior risco de contaminação ocorre no momento em que médicos e enfermeiros retiram a roupa descartável. Foi assim que as enfermeiras dos Estados Unidos e da Espanha se infectaram. Os profissionais brasileiros ainda têm dúvidas sobre a melhor forma de tirá-la. Não é fácil tirar duas luvas sobrepostas, um avental, dois macacões, capuz, bota, sobrebota, máscara, óculos sem entrar em contato com qualquer mínimo fluido infectado. As secretarias de Saúde precisam se empenhar para ensinar os profissionais a trabalhar em segurança.
Sempre que surgir um caso suspeito de ebola no Brasil, a amostra de sangue do paciente será encaminhada ao Instituto Evandro Chagas, em Belém. Lá funciona o mais completo laboratório de virologia da América Latina. É o único no país que dispõe de instalações com o nível de segurança 3, numa escala internacional de 0 a 4. A amostra do paciente de Cascavel chegou numa caixa-padrão da OMS. Ela é revestida de isopor e contém três cápsulas de alumínio sobrepostas – uma menor que a outra, como nas bonecas russas. O sangue fica dentro da última, um cuidado para evitar qualquer vazamento durante o transporte. Dentro de uma cabine de segurança, o pesquisador Bruno Tardelli Nunes usou uma pipeta para transferir o conteúdo suspeito para outro frasco. Em seguida, o material foi colocado numa máquina capaz de inativar o vírus. O técnico leva cerca de dois minutos para cumprir essas etapas. Foi auxiliado por outros dois profissionais. “Fizemos o trabalho com tranquilidade”, diz ele. “Fomos treinados para trabalhar com outros vírus perigosos, como hantavírus, arenavírus e muitos outros.”
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O resultado fica pronto em até seis horas. Se der positivo, o material é lacrado e colocado num freezer com cadeado. Depois, ele será enviado para o Centro de Controle de Doenças (CDC), de Atlanta, nos EUA, para ser cultivado e analisado. Nas Américas, apenas o CDC dispõe de um laboratório nível 4, necessário para multiplicar o ebola em segurança. “Nunca cheguei perto do ebola, nem mesmo num laboratório do exterior, mas não tenho medo”, diz o pesquisador Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, diretor do Evandro Chagas. Segundo ele, o risco de o ebola se disseminar no país é mínimo. “Os brasileiros deveriam estar mais preocupados com o vírus da dengue, uma doença endêmica que pode adquirir formas graves. Essa, sim, afeta milhares de brasileiros por ano e provoca centenas de mortes.”
TRATAMENTO
Se o ebola chegar, os serviços de saúde precisam estar preparados para aliviar seus sintomas. Foi o que faltou na África. Não havia médicos, leitos e remédios básicos. Muitos pacientes morreram de desidratação antes que o ebola provocasse problemas mais graves. Os infectados devem receber água, hidratação por soro, remédios, para evitar vômitos, dores de cabeça e no corpo. É só o que se pode fazer. Ainda não surgiu um tratamento específico para combater o ebola. Um médico americano infectado na África recebeu a droga experimental ZMapp, em testes iniciais nos Estados Unidos, e se recuperou. Em outros pacientes, ela não foi eficaz.
O governo brasileiro diz que entrou em contato com a empresa que desenvolve essa droga, mas não chegou a comprar nenhuma dose. “A empresa está em fase de experimentação e produz quantidades muito pequenas”, diz Barbosa, do Ministério da Saúde. O que há de mais promissor, no momento, é a estratégia de fazer transfusão de sangue de pacientes que sobreviveram ao ebola. Isso pode levar à fabricação de soros, como acontece com doenças como a raiva e o tétano. O doente receberia uma injeção de anticorpos. Se o Brasil for capaz de repetir o exemplo de Cascavel quando surgirem os próximos casos suspeitos, a chegada do ebola poderá não ser um problema maior que a dengue. Cabe à população se informar, não alimentar o preconceito e não espalhar o pânico.
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