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1 de novembro de 2014

O charme dos vírus

Alguns têm, outros não. Tudo depende da curiosidade que despertam e dos recursos que atraem

CRISTIANE SEGATTO


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Foto sem data mostra Kaci Hickox durante trabalho com os Médicos Sem Fronteiras (Foto: AP Photo/University of Texas at Arlington)













A pior coisa, para um paciente brasileiro, é ser infectado por um vírus sem charme. Se puder escolher, prefira um invasor bem bonitinho na próxima vez em que for adoecer. Estou convencida de que não é o grau de letalidade que torna um vírus mais ou menos perigoso. É a curiosidade que ele desperta e os recursos que mobiliza. Em outras palavras, é o charme.
A regra da natureza é simples. Vírus só quer saber de crescer e se multiplicar. Os mais espertinhos não matam sempre ou matam devagar. Assim têm tempo de infectar bastante gente antes de ir para a sepultura junto com o doente. Quem complica a equação é o homem. É ele quem elege as pragas invisíveis que devem merecer fama e dinheiro. E quais as populações que devem ser socorridas.

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ebola é um exemplo clássico. Enquanto afetava apenas três países africanos (Libéria, Serra Leoa e Guiné), ele era o menos charmoso dos vírus. O grupo Médicos Sem Fronteiras passou meses tentando chamar atenção para a crise. O cientista Peter Piot, um dos responsáveis pela descoberta do ebola em 1976, cobrou uma ação da Organização Mundial da Saúde e das nações ricas e foi solenemente ignorado.     

Quando o vírus contaminou cidadãos europeus e, depois de um descuido surpreendente, foi transmitido por um doente para duas enfermeiras dentro dos Estados Unidos, o ebola subiu de zero a dez na escala de charme.

Deixou de ser apenas uma das tantas mazelas de país pobre para despertar curiosidade e preocupação global. Não faltam ingredientes de mistério para tornar apetitosas as reportagens e programas de TV sobre a doença. Desde a roupa dos médicos – hermeticamente fechada – como nos filmes de ficção científica ou bioterrorismo – ao soro secreto que parece ter funcionado em alguns pacientes.

O charme brotou, a sociedade cobrou providências, o dinheiro apareceu. Todas as ações de controle são justificáveis e necessárias para interromper o avanço de um vírus que, na atual epidemia africana, mata de 40% a 90% dos pacientes – dependendo da região e da estrutura para oferecer cuidados básicos. Mas não se deve perder de vista a real dimensão do problema.
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No atual surto, o ebola infectou 8 mil pessoas e matou mais de 4,4 mil delas – a maioria na Libéria, em Serra Leoa e na Guiné. Em termos populacionais, o vírus está longe de ser a maior ameaça à saúde dos africanos. Só a malária, antes da crise do ebola, já matava 100 mil pessoas por ano na mesma região. A aids mata quase dois milhões de pessoas no continente a cada ano. A tuberculose, as hepatites e a febre amarela provocam outros milhões de óbitos. 

Desde o início da celeuma em torno do ebola, nenhum cidadão americano morreu da doença. As duas enfermeiras infectadas em Dallas se recuperaram sem transmitir o vírus a ninguém. É altamente improvável que o ebola se torne um problema no país. Ainda assim, o governo precisa dar à população a impressão de que é um pai zeloso.

Para isso, tomou medidas extremas como exigir que os profissionais de saúde que cuidaram de doentes nos países afetados na África e voltaram aos Estados Unidos fiquem em quarentena. A enfermeira Kaci Hickox, que atendeu doentes em Serra Leoa, não tem sintomas e realizou o teste para o vírus. Deu negativo e, mesmo assim, o governo do Maine, na fronteira do Canadá, determinou que ela fique isolada durante 21 dias.

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Na semana passada, Kaci desafiou as autoridades e saiu para andar de bicicleta com o namorado na cidade de Fort Kent. A ordem de quarentena, considerada um exagero por muitos especialistas, provoca grandes debates sobre o cerceamento do direito de ir e vir. 

O problema não é exatamente o ebola, mas o charme que emana dele. Em situações como essa, os governos precisam mostrar serviço. É o que está acontecendo no Brasil. É altamente improvável que esse vírus saia do controle caso chegue ao país, mas o ebola é o charmoso da vez.

Para acalmar a população, o Ministério da Saúde informou nesta sexta-feira (31) que passageiros vindos da Guiné, da Libéria e de Serra Leoa passarão por um controle de temperatura nos aeroportos. Os viajantes desses países receberão folhetos explicativos em três línguas e serão informados de que podem procurar o SUS sem pagar nada, em caso de sintomas.

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Medir a temperatura dos viajantes não é uma medida exatamente eficaz. Uma pessoa pode estar infectada, mas ainda não apresentar febre. O primeiro paciente suspeito, vindo da Guiné e atendido em Cascavel, no Paraná, há algumas semanas, não tinha febre quando chegou ao Brasil. Passaria facilmente pelo controle, mesmo que estivesse infectado.

É uma medida de alcance restrito, mas que traz conforto emocional. Demonstra cuidado e atenção para o problema. É o poder do charme. Quem atribui essa qualidade aos vírus é a população bem informada e capaz de se fazer ouvir. Cabe à essa parcela conter o pânico em relação ao ebola e cobrar providências para evitar a disseminação de outros vírus. Esses com certamente causarão mais dor e prejuízo. 

HIV, quando surgiu, mobilizou todas as atenções. Por quê? Muitos dos primeiros infectados tinham alta escolaridade, boa condição sócio-econômica e fácil acesso à imprensa. A sociedade reagiu com preconceito e ignorância, mas os doentes, depois de muita luta, conquistaram direitos inéditos.

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Hoje o HIV está precisando de um novo banho de charme. Os médicos e enfermeiros do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, estão preparados para atender um eventual doente de ebola. O que os preocupa, no entanto, é o aumento de casos de aids entre jovens. São esses pacientes que lotam o hospital todos os dias – sem que ninguém se impressione mais com isso. A percepção social do que deva ser prioridade em saúde tem pouco a ver com o que realmente deveria ser prioridade.
 
Quem segue em baixa na escala de charme é o chikungunya, um vírus novo transmitido pelo mesmo mosquito da dengue. Menos de dois meses depois dos primeiros casos de transmissão no Brasil, a doença “prima” da dengue provoca epidemias na Bahia e no Amapá. Há casos em outros 11 Estados e no Distrito Federal. 

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Mais de 800 pessoas foram infectadas pelo vírus que raramente mata, mas provoca dores articulares intensas. Elas impedem as pessoas de trabalhar e podem causar inflamações nas juntas durante longos meses. Para saber mais sobre esse vírus e como se proteger, clique aqui.

O Ministério da Saúde já prevê um verão complicado, com epidemia de chikungunya e dengue ao mesmo tempo. É inocência imaginar que essa epidemia continuará restrita a Feira de Santana, na Bahia. Ela chegará aos grandes centros em pouco tempo. Para pegar a doença não será necessário ter contato com fluidos corporais de doentes, como no caso do ebola. Nem respirar o mesmo ar, como ocorre na gripe.
Nada mais democrático que um vírus transmitido por mosquito. Ele unirá o sangue dos pobres aos dos ricos sem sequer ser notado. Quando isso acontecer, o chikungunya conquistará o charme que lhe falta hoje. O sapo virará príncipe já, já.

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