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1 de agosto de 2014

Uma vida dedicada à natureza

MALU NUNES*
Ibsen de Gusmão Câmara na Reserva Natural Salto Morato, mantida pela Fundação Grupo Boticário, instituição em que foi conselheiro desde sua criação (Foto: Divulgação)
Ibsen de Gusmão Câmara, um dos brasileiros que mais lutou pela defesa do patrimônio natural do Brasil, morreu na madrugada desta quinta-feira (31), em um hospital da cidade do Rio de Janeiro. Tinha 90 anos e era carinhosamente conhecido como Almirante Ibsen.
Ele foi um exemplo perfeito de conservacionista, conselheiro e ser-humano, algo próximo e ao mesmo tempo inatingível para os reles mortais. Como membro do Conselho Curador da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza desde 1990, sempre foi o pilar direcionador e inspirador de todos nós, assim como nos demais conselhos onde eu tive a honra de ser sua colega. Nos 24 anos que convivi com o Almirante Ibsen, estivesse onde estivesse, era impressionante o respeito que todos – inclusive aqueles que não concordavam com suas ideias e defesas – tinham por sua trajetória, conhecimento e consistência de posicionamentos.
Não tenho palavras suficientes para lamentar a ausência do querido Almirante Ibsen. Por outro lado, tenho na ponta da língua o discurso para enaltecer as suas conquistas. Vale a pena relembrar a sua história de vida, que é uma surpreendente combinação de militar, cientista e conservacionista.
Nascido na capital fluminense, em 19 de dezembro de 1923, aos 17 anos ingressou na Marinha de Guerra e nela permaneceu por 40 anos, atingindo o posto de vice-almirante e se tornando doutor em Ciências Navais.
Como militar da Marinha, o Almirante Ibsen comandou, de 1967 a 1969, uma flotilha de navios no rio Amazonas e realizou patrulhas ao longo de todo o rio e pelos seus afluentes. Na Amazônia, o então jovem oficial se deparou com um avançado nível de desmatamento nas áreas por onde navegou. Desde então, passou a manter contato com organizações conservacionistas.
Proteção da biodiversidade terrestre e marinha
Ao longo da década de 1970, a partir de cargos importantes que ocupou em Brasília, começou a trabalhar de dentro do governo militar a favor do meio ambiente, cumprindo papel indispensável como articulador político. Por exemplo, integrou o Conselho Consultivo de Meio Ambiente, do Ministério do Interior, desde sua criação em 1973 até sua desativação anos depois. Também participou do Conselho de Valorização de Parques, órgão do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), e depois, do Conselho Nacional de Unidades de Conservação, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Esses conselhos assessoravam a execução da política de criação, valorização e utilização das unidades de conservação no Brasil.
>> O mar perdeu o almirante Ibsen de Gusmão Câmara
Como resultado de sua atuação política, foi o elemento-chave para propor, desenhar e obter a decisão política do estabelecimento de áreas protegidas marinhas brasileiras, como os parques nacionais marinhos de Abrolhos e Fernando de Noronha e a Reserva Biológica do Atol das Rocas. Criada em 1979, Atol das Rocas foi a primeira área protegida marinha do Brasil e foi por ele delimitada. Ele também contribuiu no estabelecimento de áreas protegidas terrestres, como a Reserva Biológica do Rio Trombetas, essencial para a conservação das tartarugas de rio, e de outras áreas protegidas na Amazônia e muitas estaduais, como foi o caso do Parque Estadual de Carlos Botelho, em São Paulo, por ele proposto.
O papel de articulador do Almirante Ibsen foi fundamental ainda para a criação, em 1974, da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, uma das primeiras tentativas de aproximação entre diferentes áreas do governo e não governamentais para uma ação integrada de proteção aos ambientes marinhos. Ele dirigiu os estudos para a criação da Comissão e foi o seu primeiro secretário.
Outro marco na trajetória de Almirante Ibsen é o fato de ele ter sido um dos pioneiros no combate à caça de baleias no país. Nessa campanha, chegou a deixar de lado a cautela que sua posição na Marinha exigia e fez grandes esforços de articulação para conseguir a proibição da caça, o que aconteceu em 1987. Graças a sua atuação, hoje as águas costeiras nacional são consideradas santuário internacional para várias espécies de baleias.
Dedicação integral às ciências naturais
Ao encerrar a carreira militar, o Almirante Ibsen passou a dedicar-se à conservação da natureza em tempo integral. Em 1981, dois meses depois de se aposentar, assumiu a presidência da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN) que, à época, liderava o conservacionismo brasileiro. Representando essa instituição, foi membro por cerca de dez anos do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) – órgão consultivo e deliberativo do governo federal que estabelece resoluções e normas de funcionamento de toda a área ambiental.
Já na FBCN, seu interesse por mamíferos marinhos levou-o a coordenar uma expedição que, em 1982, identificou a presença da espécie baleia-franca (Eubalaenaaustralis) em Santa Catarina – até aquele momento a espécie era considerada extinta em águas brasileiras. Para estar à frente da expedição, o Almirante convocou o ousado jovem José Truda Palazzo Jr.: anos antes, em 1979, quando tinha apenas 16 anos, Truda havia procurado por Ibsen na Marinha para conversar sobre a preocupante situação das baleias no Brasil e, ao contrário do que muitos poderiam acreditar na época, o estudante foi muito bem recebido pelo oficial. Os dois se tornaram grandes parceiros na luta pela conservação das baleias e fundaram em conjunto o Projeto Baleia Franca. A população desse mamífero marinho é monitorada desde então pelo projeto e hoje ocorre em toda a costa sul do país.
Em 1991, o Almirante Ibsen desenvolveu o Plano de Ação para a Mata Atlântica, uma das mais importantes compilações sobre esse que é o bioma mais ameaçado do Brasil. Esse plano serviu como um dos importantes pilares que sustentou a declaração pela Unesco da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Sua definição de Mata Atlântica serviu também como base conceitual ao decreto federal n°. 750 do ano de 1993 de proteção desse ecossistema.
Ele também contribuiu para a criação de uma dezena de organizações não governamentais conservacionistas e foi conselheiro de muitas outras, como: Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, Fundação Biodiversitas, Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto Sul-Mineiro de Estudo e Proteção à Natureza, WWF-Brasil, Fundação Flora de Apoio à Botânica, Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (Save), Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC) e Sociedade Brasileira de Proteção Ambiental (Sobrapa).
Além de tudo isso, ao longo de sua jornada, o Almirante Ibsen não se satisfez com a atuação política e ambiental: enveredou-se pela ciência e estudou Paleontologia por conta própria. Apesar de autodidata, recebeu reconhecimento internacional. Tanto que foi convidado a integrar cinco sociedades científicas, incluindo a Sociedade de Paleontologia de Vertebrados dos Estados Unidos e a prestigiada Associação Americana para o Avanço da Ciência. Ele foi um dos mais respeitados cientistas brasileiros na sua área de pesquisa e igualmente muito conhecido no exterior.
Entre as muitas honrarias que o conservacionista recebeu, está a comenda da Ordem da Arca Dourada, concedida em 1990 pelo príncipe Bernard, dos Países Baixos, em reconhecimento a seus trabalhos em prol da natureza brasileira. Em 1992, recebeu o Fred Packard Award da Comissão Mundial de Áreas Protegidas (WCPA) daUnião Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), pelos seus esforços na criação de unidades de conservação marinhas e na Amazônia. Também foi reconhecido pela Academia Brasileira de Ciências por sua contribuição individual. Em 2002, recebeu o Prêmio Super Ecologia, na categoria Especial, da Revista Superinteressante. A última homenagem foi concedida a ele em 2013 pelo Ministério do Meio Ambiente do Governo Federal do Brasil, em reconhecimento a suas mais de quatro décadas de contribuição à conservação da natureza.
A saudade do querido Almirante Ibsen já é grande. Ele foi a primeira pessoa que eu senti de verdade que não podia morrer. Afinal, para mim, não existiu ninguém neste mundo que esteja à altura dele, em relação a conhecimento, postura e inteligência; e tudo isso com grande humildade. O nosso querido Almirante deveria ser eterno. Foi uma grande perda.Agora, a quem vou direcionar minhas perguntas e preocupações com o futuro da biodiversidade e do país?
*Malu Nunes é engenheira florestal, mestre em Conservação e diretora executiva da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

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