Salvador Dalí além do clichê
Uma exposição retrospectiva que estreia no Brasil nesta semana sugere que o pintor foi mais relevante que a caricatura que fez de si próprio
LUÍS ANTÔNIO GIRON E NINA FINCO
Salvador Dalí, um dos artistas mais populares do século XX, chega ao
Brasil nesta semana numa grande exposição que leva seu nome. Ela
acontecerá desta sexta-feira (30) a 22 de setembro, no Centro Cultural
Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB Rio). Depois seguirá para o
Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, onde ficará de outubro a dezembro.
A mostra, a maior de Dalí já realizada no país, permite entender a
evolução de um pintor que começou a inovar na década de 1920 e encerrou a
vida consagrado e rico, em 1989, reduzido a uma caricatura de si mesmo.
A exposição reúne 150 peças das principais coleções de obras de Dalí: o
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madri), o Museu Salvador
Dalí (Flórida) e a Fundação Gala-Dalí, de Figueres, cidade natal dele.
Ela compreende 150 itens – 29 pinturas, 80 desenhos e gravuras,
documentos pessoais e fotografias – que acompanham a produção de Dalí de
1920 até sua morte. Ele foi sempre sucesso de público e controverso
entre os críticos. Além de provavelmente atrair milhares de visitantes, a
exposição poderá suscitar uma reflexão sobre a herança do pintor: foi
um revolucionário ou um charlatão?
>> A redenção do plágioAs duas imagens que vêm à mente quando se pensa em Salvador Dalí são o sujeito magro de bigodes finos e expressão de comédia de pastelão e o quadro dos relógios derretendo. O perfil excêntrico foi uma criação do próprio Dalí, na segunda metade de sua vida, na ânsia de não ser esquecido. Ele chegou a posar para fotos vestido de palhaço. O quadro que o tornou célebre se intitula A persistência da memória. É um óleo sobre tela de 1931, desde 1934 exposto no Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova York. A obra, símbolo do Surrealismo, deu origem a pastiches usados em capas de disco, filmes, roupas e pôsteres. O quadro não figura na exposição no Rio, mas há diversas telas menos conhecidas, criadas sob o mesmo princípio: a exploração do sonho e dos delírios característica do Surrealismo, tal como era teorizado pelo poeta André Breton, patriarca do movimento. As telas demonstram que Dalí foi além da imagem que criou para si próprio. “Queremos mostrar que o aspecto burlesco que ele criou no fim de sua vida não é tudo o que foi”, afirma a curadora Montse Aguer, especialista em Dalí e diretora do Centro de Estudos Dalinianos da Fundação Gala-Salvador Dalí. “Ele era um personagem. Sua coerência se fundava na provocação absoluta.”
A razão para a atitude provocante, em seguida paródica, pode estar no modo como agiu em seu tempo e em relação a seus companheiros. Dalí foi expulso do movimento surrealista, que ajudara a fundar em Paris, porque se recusara a engajar-se na resistência ao governo ditatorial de Francisco Franco durante e depois da Revolução Espanhola. O Surrealismo baseava-se em dois dogmas: a pesquisa das imagens do inconsciente, inspirada na psicanálise de Sigmund Freud, e a oposição radical ao capitalismo. Um dogma não podia se dissociar do outro. Dalí deu uma banana para o segundo e rejeitou o envolvimento político, em especial com a esquerda radical. Banido de seu grupo original de artistas, trocou, em 1944, Paris por Nova York e mudou de vida. Passou a desenhar cenários de balés e peças de teatro, a decorar lojas, a desenhar móveis e roupas e a fazer performances barulhentas, cujo único objetivo era chamar a atenção para si. Na segunda fase da carreira, Dalí tornou-se o precursor da arte como espetáculo e da cultura das celebridades. Inspirou artistas que lhe sucederam, como os americanos Andy Warhol e Jeff Koons ou o inglês Demian Hirst. A partir de Dalí, o pintor passou a fazer parte integrante de sua obra – e do valor atribuído a ela. Como os ídolos atuais, fez experiências no cinema – seus curtas-metragens Um cão andaluz (1929) e A idade de ouro (1930), em parceria com o diretor Luis Buñuel, escandalizaram o público do tempo pela superposição de imagens inquietantes. Tornaram-se troféus da ousadia das vanguardas. Ele se portava como um comediante egocêntrico, mas pintava com talento. “Dalí é ao mesmo tempo um desenhista excelente e um ser humano irritante”, afirmou nos anos 1940 o escritor inglês George Orwell. “Uma coisa não invalida ou afeta a outra.” Não era bem assim. Obviamente, seu comportamento histriônico e aburguesado causou antipatia e condicionou a forma como sua obra foi considerada, principalmente no fim de sua vida. As telas, porém, parecem resistir ao autor e a suas manipulações. “É certo que Dalí usava a provocação como meio para ser conhecido, e os meios de comunicação foram uma grande forma de divulgar sua arte”, diz Montse Aguer. “Mas, por trás disso, está um artista cheio de técnica, que conhece muito de arte e abriu os caminhos da arte contemporânea.”
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A exposição no CCBB Rio traça o percurso de vida e obra de Dalí em ordem cronológica. Obras de arte e documentos se distribuem por 1.000 metros quadrados do 1º andar do prédio. As obras começam pelo período de sua formação como pintor, no início da década de 1920. A fase seguinte, surrealista (com uma curiosa incursão no cubismo de Picasso, no Autorretrato, de 1923), será retratada por telas como Monumento imperial a la mujer-niña, de 1929. Nem todas as suas obras foram de um enfant terrible em busca de sucesso ou escândalo. Dalí era um desenhista e pintor formado na escola acadêmica. Mesmo no ápice da transgressão surrealista, dizia que seu pintor favorito era o renascentista Rafael, mestre do Renascimento italiano. O classicismo se faz presente em todas as suas pinturas. Está nos retratos do começo da carreira, nas paisagens e cenas surrealistas e fantásticas e mesmo nas esparsas tentativas cubistas. Era um conservador na forma. “A arte contemporânea se baseia em duas coisas: a preguiça contemporânea e a total falta de técnica”, afirmou. Esse caráter sarcástico fica evidente na exposição por meio dos documentos e livros da biblioteca particular de Dalí, retirados do arquivo do Centro de Estudos Dalilianos. Eles registram a base teórica do surrealismo e reúnem desenhos que Dalí criou para ilustrar Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Eram seus clássicos favoritos.
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Dalí não era nem inovador nem charlatão. Foi um agitador que abandonou a vanguarda surrealista no momento em que ela desmoronava diante da tecnologia e do lucro. Ele trocou de lado. Dalí soube usar os chavões criados em torno dele para disfarçar sua insatisfação com os rumos da arte, cada vez mais afastada dos gêneros tradicionais e dos padrões de excelência clássicos. Algo que, com seus relógios derretidos, ajudou a impulsionar. Talvez ele sonhasse com a volta do Renascimento, mas, como artista e celebridade, ajudou a impulsionar o pop.
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