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11 de junho de 2014

Tesouros do Gobi #2: chegada em Khamar e os rituais de Shambala

HAROLDO CASTRO, DO DESERTO DE GOBI, MONGÓLIA (TEXTO E FOTOS)
Esta é a continuação da crônica publicada na semana anterior
Regresso ao monastério Khamar, no deserto do Gobi: o movimento de fiéis cresce com o passar dos anos.  (Foto: © Haroldo Castro/Época)
Do aeroporto da capital Ulaanbaatar (mais conhecida por suas inicias UB) vou direto à estação ferroviária. Compro um bilhete para Sainshand poucos minutos antes da partida do trem 286 que liga UB à capital da província de Dornogovi, fronteiriça com a China. O trajeto de 450 km é realizado em 10 horas. Na manhã seguinte, encontro os austríacos e Altangerel. Em sua Land Cruiser, ele nos leva ao monastério, situado a 40 km da vila. Alguns anos se passaram e, por conhecer tão bem as fotos anteriores, noto imediatamente as mudanças. Um gigantesco monumento de concreto, comemorando os 205 anos do nascimento de Ravjaa, foi erigido em um lugar onde, um dia, existirá uma praça.
O número de gers (tendas nômades) ao lado do mosteiro cresceu bastante, comprovando que os peregrinos mongóis afluem com mais frequencia. Dentro das gers e protegidos do calor, eles podem descansar e tomar uma taça do típico chá salgado. Observo também mais postes de energia elétrica e um deles chega a cruzar, sem nenhuma estética, o pátio do mosteiro. Infelizmente, descubro também muito mais lixo e entulho. Mas os mesmos 12 monges continuam lá, firmes e fortes, vencendo os contrastes do clima do Gobi. Iderbat, meu pequeno amigo lama – cuja foto ilustrou a abertura da reportagem de 2007 –, cresceu bastante. Já o lama Dosh, o chefe do corpo monástico, está com sua vista cada vez mais cansada. Para ler sutras budistas (escrituras sagradas), ele precisa agora de óculos.

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Lama Dosh, o chefe do monastério Khamar, lê textos sagrados durante um ritual no templo.  (Foto: © Haroldo Castro/Época)
Altangerel decide nos levar ao lugar onde estão as duas arcas enterradas. A 4x4 vence trechos traiçoeiros de areia solta e chega à foz de um riacho seco. Não há nenhum pingo d’água, mas, uma vez ao ano, o lugar pode receber uma enxurrada. “Agora precisamos caminhar”, afirma Altangerel. Devido a seu físico avolumado, imagino que o trajeto será curto. Seguimos o estreito canal do riacho esporádico e entramos em um pequeno desfiladeiro. Subitamente, como se surgisse do nada, chega um cavaleiro a galope. De longe, envolto pela poeira, parece um guerreiro das hordas de Gênghis Khan. Altangerel pede que fiquemos no lugar e vai conversar com ele. Quando retorna, explica que é um de seus homens. “O lugar está constantemente vigiado”, afirma.
Estamos cercados por paredões de pedra e dunas de areia de até dez metros. No leito do rio, cresceram várias árvores, protegidas do vento e do sol. O local tornou-se um refúgio para os pássaros da região. A cantoria quase me transporta a uma floresta tropical. Avançamos 250 metros, seguindo os meandros do riacho seco. Conto sete voltas até chegar a uma barreira de pedras de um metro de altura. Durante um raro temporal, o desnível deve criar uma pequena cachoeira. Subimos a cascatinha que existe uma vez por ano e chegamos a um espaço mais amplo, dominado por um belo paredão de pedras vulcânicas vermelhas. O lugar é perfeito para esconder um tesouro.
Altangerel abre os braços, sorri timidamente, e diz que os dois baús que ele irá abrir em quatro dias estão por aqui. Desconfiado, ele não dá nenhuma informação adicional. Não confirma se está ou não sob o leito do riacho seco. Mas afirma, depois de muita insistência minha, que a água do riacho não alcançaria as caixas de madeira, pois esta “já chega como barro e não penetra no fundo”. Teremos de esperar 100 horas para conhecer o lugar exato.
Quanto mais nos aprofundamos em um assunto, mais nos damos conta de sua complexidade. Altangerel explica que nenhum dos 17 lugares escolhidos por seu avô Tuduv contém hoje qualquer arca. “Por questões de segurança, mudei a localização de todas elas. As duas daqui estão desde 1996.” Ele também revela números diferentes aos que eu havia anotado. Em 2007, ele afirmara que 32 arcas haviam sido exumadas. Esse número passou hoje a ser 38. Não entendo a diferença. Com as duas novas, ele terá exposto 40 das 64. A matemática parece simples: sobrariam 24 baús sob o Gobi. “Não”, afirma Altangerel. “Sobram 20 e poucas arcas.” Não é simples entender as nuances da mente mongol, que não segue a mesma lógica cartesiana que a nossa. Venço minha teimosia e prefiro aceitar a resposta, sem contrariá-lo. Quem sabe, quando realizou alguma vistoria de manutenção, ele deve ter descoberto que alguma arca de madeira estava deteriorada e precisou, assim, reagrupar seus conteúdos...

O Jardim das Estupas de Shambala é passagem obrigatória para o peregrino que visita o mosteiro Khamar.  (Foto: © Haroldo Castro/Época)
Passo os dois próximos dias nas imediações do monastério, revisitando com mais cuidado os lugares que conheci antes. Uma das jóias de Khamar é Shambala, o Jardim das Estupas. A estupa é uma construção budista que simboliza a harmonia do universo. As 108 estupas (108 é um número sagrado para o budismo, equivalente a 22 x 33) de Shambala formam uma mandala quadrada. Mongóis de UB viajam mais de 12 horas para estar aqui.
Além de sua beleza estética – realçada ao nascer e ao pôr-do-sol – os peregrinos locais e estrangeiros (sejam eles devotos ou não do budismo) concordam que Shambala é um poderoso centro de energia telúrica. (De fato, é o único local na região onde há sinal de celular). Vinte mongóis capitalinos vestidos de cetim branco, seguidores da prática Reiki (de cura pela imposição das mãos), fazem oferendas e realizam rituais de energetização do corpo e do espírito.

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Seguidores da prática Reiki aproveitam sua passagem por Shambala para realizar rituais.  (Foto: © Haroldo Castro/Época)
Todos visitantes passam pelas Pedras dos Fantasmas Famintos. É o local para confessar os problemas e, assim, limpar seu karma pessoal. O próximo passo é oferecer, jogando para o alto, uma dose de vodca e um punhado de grãos de arroz. Também é importante dar três voltas, em sentido horário, ao redor de um ovoo, um monte sagrado de pedras, decorado com lenços de seda azul. Como cada pessoa contribui com três pedrinhas, o ovoo não para de crescer. Os mais devotos dão uma grande volta em Shambala e param para uma curta prece em cada uma das 108 estupas.
Para receber as boas vibrações do lugar é necessário se deitar de bruços e de costas sobre as pedrinhas vermelhas do centro de Shambala. Os homens não se inibem e tiram suas camisas e sapatos para sentir a força do Gobi com mais vigor. A visita não é completa sem a homenagem ao santo e poeta do Gobi, Danzan Ravjaa. Um novo santuário divulga a letra (e o tom) de uma música composta pelo místico e todos cantam de mãos dadas.

Dirigidos por um monge, peregrinos mongóis cantam músicas compostas pelo santo e poeta Danzan Ravjaa. (Foto: © Haroldo Castro/Época )
Não apenas os meros mortais chegam à Shambala para receber boas energias. Heróis nacionais também acreditam no poder do lugar. Hakuho, um mongol campeão de sumô no Japão em 2009 (ganhou 11 títulos desde 2006), está em Shambala para agradecer sua última vitória na categoria Yokozuna, a liga dos campeões de sumô. “Já estive aqui três vezes”, afirma o lutador, ao lado de sua frágil esposa japonesa. Sua comitiva de seis modernas camionetes é composta de parentes mongóis e de amigos de Tóquio, onde ele reside. Altangerel o recebe com respeito e veneração – afinal, a luta livre é um dos três esportes tradicionais e o sucesso do jovem mongol no Japão é orgulho nacional. Hakuho, de bermudão, tira a camisa e espalha seus 150 quilos pelo solo vermelho de Shambala.
E se, um dia, você quiser conhecer Shambala pessoalmente, visite.

O lutador de sumô mongol Hakuho visita Shambala para receber energia do solo vermelho de Shambala. (Foto:  © Haroldo Castro/Época)
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Monge budista zen japonês faz uma prece em Shambala, parte do monastério Khamar. (Foto:  © Haroldo Castro/Época )
CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA...

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