Ao Vivo

31 de dezembro de 2014

O Natal da conciliação

Chega ao fim um ano marcado por confrontos, guerras e falta de diálogo. 
Em tempos assim, os exemplos dos pacificadores se tornam mais poderosos

MARCELO MUSA CAVALLARI


HUMILDADE É FORÇA  O papa Francisco pediu a bênção ao patriarca Bartolomeu em Istambul, em novembro. Ao mesmo tempo, mediava uma reaproximação histórica entre Cuba e EUA (Foto: Gregorio Borgia/AP)

>> Reportagem publicada na edição de 22 de dezembro de ÉPOCA

O Brasil chega ao fim de 2014 politicamente dividido. Nas eleições deste ano, os ânimos se acirraram mais que em qualquer outra disputa desde a redemocratização. O clima de confronto por aqui é amargo, mas coisa leve, comparado ao que ocorre no resto do mundo. Neste ano, começaram ou agravaram-se, planeta afora, conflitos de vários tipos. A Rússia incentiva uma guerra territorial na Ucrânia. Nos Estados Unidos, milhares saem às ruas, revoltados com a morte de um adolescente negro pela polícia. O grupo terrorista Estado Islâmico degola e enforca em nome da religião. Israelenses e palestinos nem conversam mais. Um ano de selvageria chega ao fim com a notícia de um massacre de crianças numa escola no Afeganistão. O Natal de 2014 parece trazer pouca esperança de conciliação e paz entre os homens.
O cenário é frustrante. No Evangelho de Lucas, que narra com mais detalhes o nascimento e a infância de Jesus, a chegada daquele reconhecido como messias pelos futuros cristãos é associada à paz. Os pastores que passavam a noite nas imediações da cidade de Belém, escreveu Lucas, viram um anjo no céu a lhes anunciar o nascimento do menino. “E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus, dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama!’”, diz o texto. A imagem de uma paz edulcorada de decoração de loja de brinquedos não condiz com a própria história do nascimento de Jesus. A chegada do menino-deus dos cristãos não foi pacífica. O Evangelho de Mateus narra que o rei Herodes sentiu-se ameaçado pelo nascimento e tentou matar o menino, ao decretar a morte de todas as crianças de menos de 2 anos. Conhecidos como Santos Inocentes, esses mártires são festejados pouco depois do Natal, em 28 de dezembro. O dia 26 é de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão, morto por apedrejamento quando o cristianismo ainda mal se distinguia do judaísmo do qual nasceu.
>> O Natal da reconciliação de Estados Unidos e Cuba

Mensagens e exemplos de paz, portanto, não precisam de tempos tranquilos para vicejar. Pelo contrário, ganham força em tempos sombrios. Até o papa Francisco, associado por muitos a um pacifismo sem peias que se atribui à imagem de São Francisco, faz questão de pôr as coisas no lugar. Durante a visita que fez a Assis, na Itália, em outubro de 2013, ele exortou cada admirador de São Francisco a se aprofundar no conceito de paz. “Qual é a paz que Francisco acolheu e viveu, e nos transmite? A paz de Cristo, que passou por meio do maior amor, o da Cruz. A paz franciscana não é um sentimento piegas”, afirmou. Quem assume o difícil papel de defender o diálogo entre partes que buscam o confronto coloca-se, nas palavras do papa, sob um jugo – ao mesmo tempo, um peso e um sinal de obediência a uma missão maior que si mesmo. “E esse jugo não se pode levar com arrogância, presunção, orgulho, mas apenas se pode levar com mansidão e humildade”, disse. Humildade que Francisco usou para mediar o restabelecimento de relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos. Francisco pôs-se a serviço da paz sem chamar para si qualquer tipo de glória. A ideia de reconciliação é absolutamente central no cristianismo. Ela passa pela paixão, morte e ressurreição de Jesus. Só depois da perseguição e do sofrimento do messias, o homem se reconcilia com Deus. O Natal é só o começo.

Ao longo de sua história, o cristianismo se viu envolvido em inúmeras situações de confronto e desentendimento. O recente encontro de Francisco com o patriarca ecumênico de Constantinopla Bartolomeu, em Istambul, é um novo passo na tentativa de conciliação da mais antiga divisão entre cristãos. Francisco e Bartolomeu rezaram juntos e prometeram um ao outro lutar pela unidade das igrejas que representam. Não é um caminho fácil. A separação definitiva se deu em 1054, quando os chefes das igrejas ocidental e oriental se excomungaram mutuamente. A primeira aproximação ocorreu apenas em 1964, quando o então papa Paulo VI se encontrou com o então patriarca Atenágoras. Paulo VI também incentivou a reaproximação entre católicos e protestantes. Seu antecessor, João XXIII, recebera o arcebispo da Cantuária, chefe da Igreja da Inglaterra, em 1960. Paulo VI repetiu o gesto numa audiência privada com Michael Ramsey, arcebispo da Cantuária, em 1966. Foi São João Paulo II quem fez mais gestos de reaproximação entre cristãos. Em sua visita à Romênia, em 1999, tornou-se o primeiro papa a ir a um país de maioria ortodoxa. O gesto se repetiu com a viagem à Grécia, em 2001. João Paulo II foi também o primeiro papa a visitar a Sinagoga de Roma e o primeiro a ir a Israel, após o Vaticano reconhecer aquele Estado. No jubileu do ano 2000, pediu perdão por erros passados cometidos por integrantes da Igreja.
 
OS DIFERENTES Encontro ecumênico em São Paulo, em 2006. A religião pode ser uma força a favor  do diálogo, não  do confronto (Foto: Evelson de Freitas/Estadão Conteúdo)
João Paulo II tinha já uma longa experiência no caminho da busca pela conciliação por meio do perdão. Depois da Segunda Guerra, tornou-se evidente, para cristãos poloneses e alemães, que um início de reconciliação entre os dois povos teria de começar com eles. O primeiro passo, 12 anos depois do fim da guerra, em 1957, foi um encontro entre os chefes do episcopado católico alemão, o cardeal Julius Döpfner, e polonês, o cardeal Stefan Wyszynski. As relações eram frias. Muitos integrantes do clero polonês haviam morrido nas mãos de nazistas. Em 1965, os protestantes alemães pediram às autoridades que reconhecessem oficialmente as novas fronteiras da Alemanha, que perdera território para a Polônia. Em novembro daquele ano, os bispos poloneses fizeram o gesto mais impressionante. “Estendemos nossas mãos a vocês, sentados aqui nos bancos do Concílio que se encerra, oferecendo nosso perdão, assim como o pedimos”, afirmava uma declaração escrita a bispos alemães por três de seus colegas poloneses – entre eles, o então arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyła, futuro papa João Paulo II.
A disposição de perdoar os alemães foi classificada como traição pelo governo comunista polonês da época. O papel que religiosos poderiam exercer na reconciliação dos povos estava dado. “É natural que a Igreja Católica se interesse por reconciliação,” afirma Daniel Philpott, professor de ciência política no Instituto Kroc de Estudos da Paz Internacional, da Universidade Notre Dame, nos EUA. Ele faz um paralelo evidente entre a construção da paz e a eucaristia, sacramento fundamental dos católicos, que restaura a amizade com Deus. Philpott trabalha com um conceito valioso chamado justiça de transição. Trata-se do conjunto de ações necessárias para superar uma fase de abuso de direitos humanos, após guerras, ditaduras ou regimes de discriminação. Ele alerta para o vício de muitos ativistas de direitos humanos, ao rejeitar perdões e anistias, mesmo que esse curso de ação não contribua com o diálogo. Philpott afirma que o perdão pode ter um impressionante efeito restaurador nos cenários políticos em reconstrução. Aponta para outras vozes, vindas principalmente de comunidades religiosas. Sem descartar completamente o uso de punições, essas vozes dão prioridade à restauração de relacionamentos justos e à cura de feridas.
>> 2014, o ano da brutalidade

Há algo desse tipo de abordagem já no famoso discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho), feito em 1963 numa manifestação em Washington, pelo fim da segregação racial nos EUA. Seu autor foi o pastor protestante Martin Luther King. “Tenho um sonho de que, um dia, nas colinas avermelhadas da Geórgia, os filhos dos ex-escravos e os filhos dos ex-donos de escravos serão capazes de sentar-se juntos à mesa da igualdade”, disse King. A Lei de Direitos Civis de 1964 fez dele um vitorioso. Seu assassinato, em 1968, fez dele um mártir da reconciliação.

Aos que desanimam com a aparente falta de talento da humanidade para a reconciliação, não faltam exemplos redentores. A Comissão da Verdade instalada na África do Sul nos anos 1990, durante o ciclo de superação do apartheid – a política de segregação de negros e brancos –, emprestou do cristianismo a penitência e o perdão. Dirigida pelo então arcebispo anglicano Desmond Tutu, histórico combatente pelo fim do apartheid, ela propôs perdão dos crimes cometidos durante o regime racista para quem se apresentasse e os confessasse. Eugene de Kock, o mais brutal dos mantenedores do apartheid, arrependeu-se de seu passado depois de ser perdoado, durante o funcionamento da Comissão da Verdade, pela viúva de um ativista negro que ele assassinara. Esse ambiente foi fundamental para o sucesso do governo do líder negro Nelson Mandela, iniciado em 1994. Participou desse governo o presidente anterior, o branco Frederik De Klerk, cuja participação foi indispensável para a transição rumo à democracia racial.
 
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PACIFICADORES Frederik De Klerk e Nelson Mandela em 1994, no governo que encerrou o apartheid (1). Os bispos Gerardi, da Guatemala (2), e Odama,  de Uganda (3), se colocaram em risco para iniciar ciclos  de conciliação em seus países (Foto: Juda Ngwenya/Reuters, reprodução e Andrea Nieto/Getty Images)
O bispo da Guatemala Juan Gerardi foi assassinado em 1998, por seu empenho num processo semelhante. Oficiais do Exército o mataram dois dias depois de ele entregar o relatório do Projeto de Recuperação da Memória Histórica. O projeto fora lançado por ele em 1995. Espalhou centenas de voluntários pelo país para coletar histórias de atrocidades da guerra civil, entre 1960 e 1996. O relatório e a morte de Gerardi contribuíram decisivamente para o fim da guerra civil.
Em julho de 2002, o arcebispo John Baptist Odama, de Gulu, na Uganda, foi a pé ao esconderijo do líder guerrilheiro Joseph Kony, responsável por mais de 200 mil mortes na luta contra o governo ugandense. Odama estava acompanhado por outros líderes religiosos – naquele momento, representantes muçulmanos e anglicanos, além de anciãos de tribos ugandenses, compunham uma força pacificadora. Odama obteve o início de negociações de paz e incentivou a população a perdoar os perpetradores de atrocidades, entre eles Kony.

A cientista política Monica Toft, professora na Universidade de Oxford, no Reino Unido, fez um levantamento sobre guerras civis e concluiu que um número crescente delas termina em conciliação, não em vitória de um dos lados. De 1940 a 1989, três quartos das guerras civis acabaram em vitória de um lado. Nos anos 1990, 42% delas tiveram soluções negociadas. Mais guerras civis terminaram em acordos de paz de 1989 a 2004 que nos dois séculos anteriores. Das 55 operações de paz feitas pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1945, 41 começaram após 1989. Gerard Powers, especialista em relações internacionais e ex-assessor da Conferência Episcopal Americana para Construção da Paz (Peacebuilding), lamenta que líderes e comunidades religiosas ainda sejam pouco usados em negociações de paz. Acredita que predomine, na comunidade de defesa dos direitos humanos, a visão da religião como um fator de intolerância e violência. Para Powers, religiosos são agentes eficazes de transformação, tanto em iniciativas de base, em comunidades e na sociedade civil, como em negociações de alto nível, entre governos – como se viu na semana passada, na aproximação entre Cuba e EUA. Para os cristãos, a paz anunciada pelo anjo no primeiro Natal continua a ser uma esperança e um dever.

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